Posted: 04 Jan 2018 12:36 AM PST
Marcelo Rebelo de Sousa tem a razão que lhe dá o vazio de acção estratégica governamental. Mas, de resto, a julgar pelo que diz, desconhece-se-lhe o que pensa. Acho que ele também.
Parece, aliás, o Cântigo Negro de José Régio – não sei por onde vou, não sei para onde, sei que não vou por aí... – um poema poderoso que retrata a angústia de quem não consegue encontrar almas gémeas para trilhar um caminho. Uma angústia que, em ponto bem menor, se molda à pele de Marcelo, na proporção inversa do afecto que colectivamente faz tanto acinte em querer mostrar:
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
(...)
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
A mensagem de Ano Novo de Marcelo não é o vendaval de José Régio: é uma versão pindérica, um exercício parco e pobre de ideias, esvaziado de ideias articuladas ou de uma análise dos problemas que Portugal enfrenta, uma versão pimba e cor-de-rosa do que poderia ser um hino nacional. E, porque impegnado daquela ideia do passado de que o povo simples só entende ideias simples ou abraços, o discurso pode ser repetido todos os anos. Marcelo pode ir de férias e deixar alguém a preencher-lhe o parágrafo com a parte noticiosa de cada ano, que tudo cairia no sítio certo.
“Estranho e contraditório ano esse, que ontem terminou, e que exigiu tudo de todos nós”. Sim, todos os anos serão “estranhos e contraditórios”, porque haverá sempre aspectos positivos e negativos a sublinhar. Tanto em Portugal como no Mundo, na Europa, na Ásia, em Madagáscar, na Península de Kamchatka, na Antártida, entre os pinguins. “Ano povoado de reconfortantes alegrias, mas também de profundas tristezas”. Sim, como todos os anos, a qualquer momento, tanto em Portugal, como no mundo, como em qualquer parte, mesmo onde não haja pessoas, porque os bichos se têm e se comem uns aos outros, angustiados.
Marcelo tem apenas um sistema binário e bipolar, pobremente claro, contraditório e conservador, como aquele que o celebrizou na televisão, brilhantemente caricaturado pelos Gato Fedorento. Primeiro, os factos positivos e, depois, os maus, mas em repeat: os incêndios, os incêndios, os incêndios, Tancos, Tancos, Tancos, a queda de árvore no Funchal (!!) e... mais incêndios, incêndios, “tudo pondo à prova o melhor das portuguesas e dos portugueses”. E por estranho que parece, esse sistema empobrecido contaminou tudo e transformou-se no discurso da oposição e da comunicação social. Realmente, nada como repetir, repetir, repetir.
E os factos positivos foram enviesada e nada inocentemente escolhidos, tanto em si, como em conceito:
“finanças públicas a estabilizar” – aliás, cada mais próximas do superávite, apesar das lacunas que ele gosta de mostrar ao Estado; “banca a consolidar” – sim, com menos e mais limitada banca pública, sem capacidade de ser recapitalizada, com mais despedimentos e com o principal banco privado nacional na mão do Banco Santander; “Economia e emprego a crescer” – mas a crescer para onde, em que actividades e com que emprego, com que salários, com que sustentabilidade, com que empresas?; “Europa a declarar o fim do défice excessivo” – ou seja, mais austeridade como filosofia salvadora; “confiar ao nosso Ministro das Finanças liderança no Eurogrupo” - uuhhh que felicidade, quando isso apenas representará mais austeridade como filosofia de base e ataques a direitos laborais; “mercados a atestarem os nossos merecimentos” – que visão gasolineira do que está em causa e sempre naquela atitude “temos de fazer o que os mercado querem”, tantas vezes repetida em 2011 e 2012...
E para rematar, mais austeridade em perspectiva: “Tudo isto colocando fasquias mais altas no combate à pobreza, às desigualdades, ao acesso e ao funcionamento dos sistemas sociais e aconselhando prudência no futuro”. Mas prudência será a palavra mais indicada do que está em jogo, sobretudo para quem está sempre a sublinhar que “o Estado falhou”?
“Ninguém imaginaria, há menos de dois anos, poder partilhar tão rápida e convincente mudança”. Rápida? Passaram dez anos desde o início da crise de 2007/8 e muita catástrofe aconteceu a centenas de milhares de pessoas em situação de que ainda não se ergueram, fruto das más políticas macroeconómicas impostas de fora e assumidas interiormente até pelo Presidente! Mudança? Saberá para onde se caminha com o actual enquadramento espartilhado, com esta rarefacção de soberania política, a que nos deixam quase apenas a gestão de dinheiros comunitários como investimento público, devidamente orientado, e assente em actividades económicas de baixa produtividade? “E nem faltariam ao crescendo de alegrias de boa parte do ano que findou, o triunfo europeu da nossa música, os excecionais galardões no turismo, o sucesso reiterado no digital, os êxitos nas artes, na ciência, no desporto, colocando Portugal como um destino cimeiro”. Mas será que não se tem a noção do ridículo, ao viver-se este momento de conversa de café, de baixa política. Será que se trata de mais uma facilitismo do comentador de televisão, curto e superficial que não de um Presidente da República? Para quem quer a reinvenção, teme-se o pior...
Só o conceito de reinvenção tem todos os ingredientes de esturro. Durão Barroso defendeu-o quando quis demitir Guterres. Santana Lopes repetiu-o quando quis impedir eleições antecipadas e acabou cabisbaixo, a falar na televisão, com outra estranha personagem nacional – António Vitorino. Reinventar significa escolher quem saiba reinventar, e geralmente não é quem falha.
Mas o que quer o Presidente reinventar? Não se percebe. Marcelo fala de “mais do que mera reconstrução material e espiritual” – mas de quê? Contra quem?; “pela redescoberta” – de quem? Dos “esquecidos” que votam, “decidem (...) os destinos de todos”, mas não decidem nada; da “confiança” – em quê? Mais incêndios: na "segurança”, na “certeza de que, nos momentos críticos, as missões essenciais do Estado não falham”, da “verdade, humildade, imaginação e consistência” – de quem? Nada se diz, mas conseguimos perceber de quem se trata. Porque quem é que está à frente do Estado?
E como reinventar? Mais incêndios: “Converter as tragédias que vivemos em razão mobilizadora de mudança”. “Recusar a resignação”, “superar o que de menor nos divide”. Na altura dos incêndios fez todas as perguntas. Mas agora falta-lhe a palavra: A quem? Com quem? Para onde? Com que recursos? O Presidente não se pergunta como fazer tudo quando, ao mesmo tempo, defende a austeridade continuada no Estado?
Marcelo quer, sim, estar à frente de todos – contra quem? – ao liderar o povo “esquecido”: “Esta é a palavra de ordem que vem do Povo, deste Povo, do mais sofrido, do mais sacrificado, do mais abnegado”. Mas para onde? Marcham todos em direcção a que precipício? A um bloco central?
Marcelo beneficia da inacção de um governo que não quer ter iniciativa, que sente que não pode ter iniciativa e que espera apenas os fundos estruturais que irão pagar profissionais qualificados. Mas esse vazio é apenas preenchido pelo Presidente - que sente que tem pouco tempo - com mais palavras aparentemente ocas e intrinsecamente conservadoras, que visam, sim, combater institucionalmente este governo, na ausência também de uma oposição sem programa. Estranhos momentos estes.
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