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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

A política do dramalhão, ou como Rio perde tempo

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 27/02/2018) 

LOUCA3

Fernando Assis Pacheco, grande escritor, gostava destes apontamentos suaves. Citava ele a Ilustração Portugueza, suplemento do Século, que descrevia a vinda do Racing Club, de França, para mostrar o seu foot-ball no campo da Palhavã: “Foram mais de seis mil pessoas que assistiram a essas provas brilhantes, entre as quais muitas senhoras das mais elegantes da nossa sociedade, o que assegura o interesse que o sport do foot-ball tem despertado nos diversos meios. (...) Dentro em pouco outras équipes estrangeiras virão disputar com os foot-ballers portugueses novos matches, que chamarão ao Campo da Palhavã a mesma elegante e numerosa concorrência.”

O Benfica perdeu o campo em 1923, atravessado por uma estrada, mas lá ficaram gloriosas memórias. Quanto à intenção de animar “muitas senhoras das mais elegantes da nossa sociedade” e acompanhantes, era generosa, mas, como se sabe, a “elegante e numerosa concorrência” tornou-se demasiadas vezes, um século mais tarde, uma multidão de ódios capitaneada por rufias que encaixam somas colossais com comissões manhosas na “compra” e “venda” de jogadores.

Deu recentemente que falar um dos chefes de um grande clube, Bruno de Carvalho, que zurziu nos adversários, reclamou poder absoluto e derreteu as televisões. Pavilhão escaldante, os presentes tinham vindo para isso mesmo, para treinar ódio. Ora, há nisto alguma novidade? Só a sofisticação, mas a técnica Bruno de Carvalho (chamar-lhe-ei TBdC para simplificar), e que aliás é igual à de outros chefes de clubes, tem boas tradições em Portugal. É uma política ou, como se vem dizendo, uma estratégia, embora a TBdC só resulte se for friamente executada num roteiro seguro, que passo a expor para benefício dos aprendizes.

Sim, caro leitor ou leitora, também no seu caso, se usar bem a TBdC, pode chegar a chefe de clube. Aperte o cinto de segurança e vamos a isso.

Primeira técnica: eu vou-me a eles

Ainda se lembra de Avelino Ferreira Torres? Foi presidente de uma Câmara pelo CDS, tem uma avenida com o seu nome que vai dar a um estádio de futebol com o seu nome no concelho a que presidiu, e um dos cultores desta primeira técnica. Ela consiste simplesmente em esgoelar e anunciar que se vai atirar de cabeça, saiam da frente. Valentim Loureiro, nos seus bons tempos de também dirigente de futebol, ou outros autarcas da mesma cepa, usaram esta TBdC com mérito e sucesso.

Tem boas potencialidades: desde as guerras ancestrais que se espera que, se a gritaria for muita, o adversário se assuste. O único inconveniente é a suspeita do segura-me se não eu bato. Não repetir demasiado.

Segunda técnica: melhor ser insultado do que ignorado

É a TBdC mais arriscada, tipo André Ventura em Loures. Se ainda não deram por ti, põe a mira em alguém que seja notório, provoca indignação, vai à bomba. O melhor mesmo é atingir muita gente de uma penada: atacar as mulheres feministas é garantido e há sempre algum lorpa a apoiar, insultar ciganos é arriscado mas tem basta audiência, desprezar jovens que não são como no nosso tempo tem efeito.

O problema é que esta TBdC não resulta com toda a gente, houve quem tentasse e fosse ignorado pelas gazetas e pela multidão, dado que há o risco de se notar que a rã acha que é um boi. Usar qb.

Terceira técnica: olhe para mim que vem bojarda

A terceira TBdC é usada por todos os dirigentes dos grandes clubes, não se ofenda que sabe que os três usam a mesma receita. Aprenderam com Alberto João Jardim a fazer aqueles discursos em festa de partido, regados a poncha e ligeiramente alegretes, em que o continente era bombardeado com ameaças tonitruantes. Não há mais dinheiro? Será independência, ou pior ainda, nem sabem do que sou capaz. Se me pagarem, a independência fica para depois do Carnaval e logo se vê.

No caso do futebol, a conversa é sobre os árbitros. Que foi penalti, que nunca fomos tão prejudicados, que vamos fazer queixa, que eu sei o que tu fizeste no jogo passado. É aqui que esta TBdC tem entoações mais conspiratórias, criando uma espiral de debates para todos ralharem sem razão, exercícios de cinismo em que a representação de um clube se confunde com a exibição de fanatismo. Para ganhar uma eleição num grande clube, esta TBdC é a técnica comprovada.

Merece homenagem Pedro Guerra, ex-jornalista e ex-assessor do governo PSD-CDS e do grupo parlamentar do CDS, que é um dos melhores cultores desta TBdC, mas não o único: há televisões que contratam estes artistas por entenderem que a audiência é seduzida pelo despautério. Abusar para se fazer notar.

A arte do dramalhão...

Aqui está, as TBdC são um poço de estratégia. Em algumas eleições locais, e certamente nos grandes clubes, não pense que ganhará sem exibir estes dotes. Mas, a partir daí, tenha cuidado. Nem sempre fica bem, há gente finória que não aprecia por demais estas frescuras. As derivas são tentadoras mas pode acabar por se perder na sua representação, depois tem de meter os pés pelas mãos, o que há de convir que é incómodo, queima-se.

E se o tremendismo serve para engrossar as margens e para treinar os ódios, o que é em si mesmo uma forma de vida, na política tem sido preferida a arte do dramalhão. É mais contida, menos folclórica, mas ainda assim animada. A demissão de Paulo Portas a propósito da “linha vermelha” que era a nomeação de Maria Luís Albuquerque, o pedido de desculpa de Passos por ter apoiado os primeiros PEC de Sócrates ou o seu simultâneo “o PSD não está cheio de vontade de ir ao pote”, até o “entre a espada e a parede, prefiro a espada” de Guterres, tudo isso é dramalhão. Do bom, do inchado, resplandecente. Já sabe, se não for futebol a sua ambição de carreira, use o TBdC só até chegar à fronteira do dramalhão. A partir daí, prefira a pose, será só faturar.

... e o défice Rui Rio

Aqui está então a fragilidade de Rui Rio: o grupo parlamentar pede-lhe TBdC ou pelo menos um dramalhãozinho, e o homem mantém-se mudo e quedo, nem lhes bate à porta. Marcelo espera que ele desencante alguma proposta e até apresenta prazos e temas, e silêncio. António Costa recebe-o bonacheirão, e nenhum ultimato.

Os jornais esperam uma notícia, e é um buraco negro, só sobram encontros com o governo segundo a agenda do governo para aprovar as propostas do governo. Na maré, Rio não satisfaz ninguém, enredado como está em jogos de palavras: bem pode dizer que um bloco central é o sexo dos anjos, que logo espreita a tentação do apoio ao PS depois das próximas eleições, manobra que se arrisca a confirmar cada dia entre silêncios e ações.

Só impreparação, nem se arrisca a uma palavra ou ideia? Haja fé: quando decidiu a sua direção, Rio mostrou que está atento às potencialidades da TBdC e escolheu Elina Fraga, que logo que foi perguntada sobre o seu passado resolveu o assunto explicando que o governo “lhe repugna por ser de esquerda”, uma pérola que devia ser emoldurada. E pôs no centro das operações o engenheiro Salvador Malheiro, inventivo presidente de Câmara de Ovar e especialista em votos flutuantes e TBdC autárquica.

Temos então a receita da inauguração de Rio: silêncio, não lhe peçam propostas, somando uns factotum que exercem uma TBdC mais para o barulhento, por definição sem propostas. Se o tempo se lhe torna curto, só se pode queixar de si próprio.

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