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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

A tecnologia, o populismo e o admirável mundo novo

A tecnologia, o populismo e o admirável mundo novo

Foi já há quase quatro anos, a 14 de Junho de 2014, que o Partido Comunista Chinês anunciou o seu “sistema de crédito social” que se tornará obrigatório em 2020 para todos os seus cidadãos e entidades, e que os classificará de 350 a 950 pontos de acordo com a “correcção social” da sua actuação, que incluirá o que compram, como andam nas ruas, com quem se relacionam e, claro, os seus pontos de vista políticos.

  • 27 Fevereiro, 2018
  • Paulo Casaca, em Bruxelas
  1. A cidadania por pontos

Foi já há quase quatro anos, a 14 de Junho de 2014, que o Partido Comunista Chinês anunciou o seu “sistema de crédito social” que se tornará obrigatório em 2020 para todos os seus cidadãos e entidades, e que os classificará de 350 a 950 pontos de acordo com a “correcção social” da sua actuação, que incluirá o que compram, como andam nas ruas, com quem se relacionam e, claro, os seus pontos de vista políticos.

Para construir a base de dados, as autoridades chinesas utilizam toda a parafernália da tecnologia contemporânea, incluindo redes sociais, câmaras de vigilância e dados de compra, e contaram à partida com o empenho de oito das maiores empresas chinesas.

Assim sendo, dentro de dois anos, já será possível decidir de forma quase automática como tratar cada pessoa ou entidade, se ela deve receber um empréstimo, se deve ter acesso à universidade, se se pode e deve ser promovida, como deve ser tratada pelas autoridades policiais e fiscais, etc., numa materialização quase perfeita do mundo antevisto por George Orwell.

O programa é objecto do comentário de um dos think tanks de referência de Singapura (RSIS) que o enquadra em vários outros desenvolvimentos tecnológicos no Ocidente com consequências potenciais nas liberdades individuais. O comentário questiona assim, não o sistema político, mas antes a tecnologia que torna possível este controlo.

Recordemos que as autoridades chinesas têm directa ou indirectamente uma presença esmagadora na economia e sociedade portuguesas e que não têm feito reserva da sua intenção de a reforçar nos domínios onde ainda não têm uma posição dominante. Esse facto explica naturalmente a generalizada subserviência portuguesa, incluindo o silêncio sepulcral da comunicação social, sobre esta ou outra matéria que possa vir a prejudicar a pontuação das elites portuguesas numa futura extensão do “sistema de crédito social” chinês ao nosso país.

Mas se as instituições portuguesas se têm mantido completamente alheadas desta temática, elas têm dado uma grande relevância a uma “Comissão Nacional da Protecção de Dados” em nome da qual se tem impedido a utilização racional dos recursos públicos ou o conhecimento de dados que são obviamente do interesse público (como sejam o valor e os destinatários de pensões de reforma públicas).

Enquanto na Bélgica eu, como cidadão europeu residente (tal como a instituição que dirijo), tenho um único número, que serve para a identificação eleitoral, a identificação civil, a identificação no sistema nacional de saúde, a identificação no sistema de segurança social ou a identificação fiscal, em Portugal tenho um número diferente para cada caso. O número de cidadão eleitor português, por exemplo, parece existir mesmo apenas para as autarquias inventarem residentes e portanto, maximizarem receitas de transferências públicas, e a imprensa e os comentadores se lamentarem ritualmente sobre os elevados números da abstenção.

Por exemplo, o meu médico, ou qualquer autoridade médica que tenha de me atender com urgência, lendo o meu cartão de identificação belga, sabe logo todo o meu historial médico.

Impedirmos que isto seja feito em nome da “defesa da privacidade” é inverter as causas e as consequências dos fenómenos. A violação da privacidade não se previne proibindo a utilização das modernas tecnologias – que existem, se difundem e nos condicionam, independentemente da vontade de quem quer que seja – mas ela só se previne, prevenindo os Estados totalitários, ou os agentes totalitários dos Estados, de as utilizarem.

Por outras palavras, se a “Comissão Nacional para a Protecção de Dados” quer ter uma actividade útil entre nós, em vez de impedir a utilização racional da tecnologia existente, tem antes de se preocupar com o abuso por agentes do Estado (do nosso, e dos outros, especialmente dos mais poderosos e totalitários) da tecnologia existente.

Preocupe-se com a sistemática violação do segredo de justiça e a sua utilização a despropósito; preocupe-se com a utilização não controlada de dados pelas redes sociais, registos de empresas e câmaras de vigilância; e preocupe-se, acima de tudo, contra a óbvia ameaça totalitária que o sistema de crédito social chinês faz pesar sobre as nossas cabeças.

  1. O senhor Ministro Santos Silva e o populismo

Publicou o senhor Ministro Santos Silva na “Folha de S. Paulo” um artigo de opinião intitulado “Será que as redes sociais estão substituindo os intelectuais?” que discorre longamente sobre o tema, manifestando o receio de as elites intelectuais poderem ser postas em causa pelo populismo, que seria hoje encarnado pelas redes sociais.

Tal como Tan Ming Hui e Walid Lemrini (autores do comentário da RSIS acima referido) também o senhor ministro inverte a relação causal entre o fenómeno político (populismo) e a base tecnológica (redes sociais). Fá-lo, no entanto, de forma bastante menos defensável que estes, dado que o populismo é um fenómeno que é tratado pela ciência política há uns milhares de anos e as redes sociais são contemporâneas.

O texto do senhor Ministro, no esteio da tradição intelectual portuguesa, discorre longamente sobre a história do populismo, sem tratar de relacionar a sua manifestação de sapiência com a tese que procura demonstrar e sem cuidar de ter em conta que com uma história tão longa, dificilmente poderemos culpar as redes sociais pelo populismo contemporâneo.

A tese de que a liberdade de expressão do cidadão, agora catapultada pelas redes sociais, é um desafio à democracia e ao Estado de Direito, que as redes sociais inventaram as “fake news”, e que o Estado tem de proteger as suas elites destes ataques, não é na verdade original, e está em consonância com os repetidos apelos à censura que têm sido desenvolvidos nos últimos tempos por vários dirigentes europeus, de quem, curiosamente, não se conhece um único alerta perante os perigos reais que o “sistema de crédito social” chinês faz pairar sobre os direitos do cidadão; na China e entre nós.

Quanto às reais “fake news”, ou melhor, as estratégias de desinformação, que o senhor Ministro entendeu por bem pôr às costas de quem usa as redes sociais, há uma obra que ele certamente conhece e que deveria ter em conta neste contexto: A arte da guerra de Sun Tzu (general chinês que a escreveu há cerca de 2500 anos). Na sua mais famosa citação, ele diz-nos:

A guerra é toda feita de engano. Se puderes fazer algo, faz o teu inimigo crer que não podes; se estiveres perto, fá-lo crer que estás longe.”

Se a tivesse em conta, em vez de atribuir ao “populismo” as estratégias de desinformação com que nos confrontamos, talvez ele as pudesse entender de forma diferente.

O senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal resolveu assim verter para português do Brasil aquilo que é o ponto de vista que paira nos corredores de Bruxelas, emprestando para isso as suas credenciais políticas e académicas bem como a de ser usuário da língua de Camões. Daqui, só posso concluir que quadra bem com a estratégia do “bom aluno” que continua a dominar a nossa diplomacia.

  1. A ameaça tecnológica

O Economist do dia 17 de Fevereiro na sua rubrica “Schumpeter” faz uma interessante comparação entre a competitividade dos Estados Unidos e a da China onde sobressai o ritmo avassalador com que o segundo país ultrapassou, vai ultrapassar, ou se aproxima velozmente do primeiro. Os únicos domínios essenciais onde a China apenas se aproxima velozmente dos EUA são a finança e a tecnologia, sendo que neste último é bem possível que a ultrapassagem se dê já na próxima década.

As implicações do que está a acontecer são relativamente fáceis de entender, se bem que os seguidores de Sun Tzu – o lendário general tem um estatuto quase transcendente – sejam muito discretos na matéria, naturalmente em obediência aos mandamentos do seu ídolo.

Os líderes europeus agem como se os perigos colocados à sociedade livre e democrática (as elites intelectuais na versão ainda mais sobranceira do nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros) fossem a linguagem desbragada, a afirmação popular não devidamente escrutinada ou os milhares de outras formas de “incorrecção política” que o “populismo” incentivaria, e não as estratégias de desinformação e subversão dos inimigos da democracia.

O plano chinês para acabar com a incorrecção social (e, semanticamente, a expressão escolhida pelo Partido Comunista da China faz mais sentido que a populista “correcção política”) nunca motivou nenhuma manifestação no Ocidente da parte de toda aquela enorme mole de devotos partidários da liberdade e democracia que asseguram querer acabar com todas as discriminações, atavismos e perseguições.

Da mesma forma que foi possível mobilizar milhões de cidadãs livres e cultas dos EUA para manifestações de mulheres onde é dada a palavra a uma representante da Irmandade Muçulmana (mas a nenhuma das suas vítimas), organização que se distinguiu ao longo dos seus noventa anos de existência no cercear dos direitos da mulher em todo o mundo muçulmano, também parece ser possível mobilizar os defensores da liberdade para acabar com essa mesma liberdade.

Parece-me por isso que o admirável mundo novo antevisto por Huxley no auge da crise dos anos trinta resulta assim mais da loucura colectiva que paira entre nós do que de conspirações ou de crises.

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