Generosamente, vou usar o termo “esquerda” na sua acepção mais geral do conjunto de pessoas e organizações que se consideram e são tidas como expressão dos variados pensamentos e ações que, nos meados do século XIX iniciaram a luta dos explorados por uma sociedade socialista, sem exploração do homem pelo homem.
- 26 Fevereiro, 2018
- João Vasconcelos Costa
Consideremos todas as famílias políticas que daí derivaram, incluindo por essa razão histórica a atual social-democracia, associando-lhes ainda a luta anticolonial ou anti-imperialista e os movimentos antissegregacionistas. Até podemos incluir os movimentos cristãos inspirados na teologia da libertação.
Esta esquerda, hoje, está em refluxo, estreitou-se e perdeu perspetivas e impacto. Não se vivem hoje momentos revolucionários, muito menos uma dinâmica global e sustentada de esquerda. É negativo, quanto a isto, a esquerda meter a cabeça na areia.
Desabou o sistema do socialismo de tipo soviético e alguns países da Europa centro-leste seguem políticas quase fascistas. Restaram meia dúzia de países socialistas, sendo que a China é caso de um socialismo bem duvidoso. Na Europa, a grande maioria dos países é governada pela direita e poucos partidos de esquerda têm dimensão razoável, enquanto que muitos trabalhadores atingidos pela pós-industrialização são atraídos pela extrema-direita. Na América latina, a oligarquia colonial-esclavagista, com o seu neoliberalismo extremo, deu golpes sérios na Argentina e no Brasil, ameaça na Venezuelana e até no Equador já podem jogar com um presidente que abandonou a sua linha progressista. Em todo o mundo ex-colonizado desapareceram os regimes nacionalistas e anti-imperialistas.
Também no domínio ideológico houve grandes mudanças. Por um lado, a esquerda radical tem-se cristalizado numa ortodoxia que vai contra a flexibilidade metodológica e de mundivisão que é por natureza a da filosofia, marxista, que geralmente invocam. A riqueza de muita reflexão marxista moderna não passa para a “intelectualidade orgânica” e não tem eco na adequação da ação e da mensagem às mudanças aceleradas na economia, na sociedade, na cultura e no senso comum.
Outra esquerda radical, mais recente, “cool” e intelectualizada, tende a privilegiar causas de identidade mais do que de redistribuição ou propriedade, alinhando também por reformismo de raiz burguesa.
Por outro lado, a social-democracia assimilou o pensamento e práticas do neoliberalismo, num cosmeticamente mais suave social-liberalismo. Na Europa, faz parte do grande reino do pensamento único da UE e joga bem no mundo dos negócios, dos capitais livres, da globalização, do atlantismo militar.
Todavia, não decorre de tudo isto razão para pessimismo, apenas realismo e adequação da luta à situação presente. Também não de ilusões. Não se avançará – pelo contrário, quebrar-se-ão forças – se se puser esperanças numa crise global do capitalismo, sobrevalorizando as suas atuais contradições evidenciadas pela crise de 2007. São contradições que o sistema provavelmente superará, como fez com o conflito entre imperialismos, com a descolonização, com a enorme mudança da tecnologia e da organização do trabalho, com a relação entre capital financeiro e capital industrial, com a resolução de conflitos de protecionismos por via da globalização e da desregulação, etc. Não me parece que já se esteja numa situação de interregno gramsciano, em que o velho já está a morrer.
Recusando uma perspetiva redutoramente determinista do processo histórico, com base apenas nas contradições económicas e na luta de classes, e voltando a Gramsci, tenha-se sempre presente a análise em termos de hegemonia, isto é, a dominação também ideológica da classe dominante, em que ela consegue que a massa relativamente informe e alienada de grande parte das classes exploradas adote como interesses “nacionais” os da classe dominante. E aceitando um “sentido comum” de valores, esquemas mentais, quadros de pensamento que a enfileira na ordem estabelecida, e por via do aparelho ideológico da classe dominante (comunicação social, propaganda política, escola e principalmente universidade, igrejas, indústria do lazer e do desporto, etc.). O grau atual de hegemonia do capitalismo é inédito.
Dito tudo isto, não parecem merecer muita dúvida algumas teses, aqui necessariamente formuladas em termos muito gerais.
- No refluxo da esquerda, a atitude desta deve ser a de um recuo defensivo em que tem um papel crucial a unidade ou pelo menos a convergência. Sem esbater objetivos finais diferentes, considere-se que na presente situação são postas em causa conquistas que qualquer pessoa de bem consideraria já uma aquisição civilizacional. Concretamente, é necessário um programa e uma plataforma unitária para a reconstrução do Estado social.
- À defesa, correm-se maiores riscos de falta de perspetiva do longo prazo, em suma, de oportunismo. É fase em que é necessário afirmar os grandes objetivos ideológicos e estratégicos, iluminando as necessárias cedências táticas.
- No entanto, há que pesar sempre os riscos de uma política, mesmo que progressista, de gestão social(ista) do capitalismo, mormente no caso europeu, com o grande condicionalismo internacional, isto é, da UE, sobre a determinação política e económica nacional. O caso português atual é exemplar no que respeita à incapacidade do atual governo de ir para além da reposição de danos troikianos, preso pela obediência europeia que impede a resolução do problema da dívida e o uso de um défice acima das normas para favorecer o investimento. Esta contradição é a maior ameaça à manutenção da convergência de esquerda.
- É urgente e decisivo o combate ideológico, o esclarecimento, a luta contra a desinformação (que já chega às campanhas eleitorais, com as “fake news”), a manipulação e a alienação, para o que se deve explorar todas as potencialidades dos novos meios sociais de comunicação pela “net”. A esquerda deve adotar um novo discurso, moderno, apelativo, correspondendo aos anseios das pessoas, do indivíduo concreto e não só da sociedade abstrata, anseios não só materiais mas também de forma de viver e de estar na família, no trabalho, na comunidade.
- É necessário conjugar as especificadas com lições gerais interessantes de cada país ou região. Tem havido experiências pontuais que podem fugir aos arquétipos das forças políticas tradicionais e esquemáticas, experiências que podem ter limitações ou terem sido mal conduzidas, mas que podem abrir caminhos de mudança. Pense-se em Bernie Sanders, no trabalhismo anti-imperialista e desenvolvimentista na América latina, na génese de novos partidos baseados em movimentações inorgânicas, na evolução de ações mutualistas para ação política coerente, na emergência de formas de democracia participativa, etc.
- É urgente recuperar para a esquerda o seu eleitorado tradicional perdido para a extrema direita populista. Tem de se analisar as razões de tal fenómeno e ir ao seu encontro, embora muitas vezes essas razões tenham a ver com a manutenção de posições políticas e sindicais já inviáveis no mundo atual. É preciso uma oferta alternativa, que a esquerda nem sempre tem apresentado de forma plausível.
- Uma frente de ação popular não se deve limitar ao plano partidário, como em Portugal. Tem de integrar um conjunto forte e variado de movimentações sociais. Há desconfiança em relação à política tradicional e ao funcionamento da democracia representativa. Mais, camadas importantes desfavorecidas não têm representação eficaz no sistema político tradicional da esquerda, nomeadamente reformados, desempregados e em particular os mais qualificados, imigrantes, minorias. Para preencher esse vácuo, é fundamental a ação pedagógica de esquerda para o espírito cívico, participativo.
- É necessário o exemplo instrutivo de um novo partido da esquerda moderna. Falar dele será objeto de outro artigo.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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