por estatuadesal
(António Guerreiro, in Público, 16/03/2018)
António Guerreiro
Durante os dias em que decorreu um congresso partidário, o comentário político jorrou em catadupa dos jornais, da rádio, da televisão. Mesmo em tempos normais, ele é abundante; mas nestes momentos de festa é pletórico e dilata de maneira demagógica os seus atributos. A situação espiritual do nosso tempo — como se dizia outrora — deve muito a este exército de soldados da eloquência, mobilizados para uma marcha fútil e exuberante de frases e frases que, de certo modo, nada dizem. “De certo modo, nada”: esta expressão podia ser um tique de linguagem usado por estas milícias de jornalistas, intelectuais, professores e políticos em reciclagem. Experimentemos em inglês: somehow nothing. Soa melhor ou, pelo menos, disfarça o vazio. Porquê o modalizador somehow? Para deixar a indicação clara de que o juízo que classifica uma frase como não substancial ou não significativa é subjectivo, é uma questão de perspectiva. A minha perspectiva foi a do leitor, a do ouvinte e a do espectador que quanto mais escutava e olhava de perto as análises e comentários em catadupa, mais eles pareciam olhar-me de longe. Mobilizei-me, compareci e aguentei até soçobrar. Não por dever cívico, mas por uma circunstância especial e irrepetível que me pôs colado aos ecrãs, às colunas de rádio, às páginas dos jornais. Julgava que sabia tudo ou quase tudo sobre o comentário político tal como ele é praticado pelos seus oficiantes. Mas fiquei a saber ainda mais: que o puro vazio, contemplado de olhos abertos, provoca um estado de letargia e encantamento.
O exército de comentadores e analistas é ecléctico: há os histéricos, os teatrais, os circunspectos, os cómicos, os enfáticos e os académicos. Estes últimos não provêm necessariamente da Universidade e podem não pertencer à categoria dos politólogos. De igual modo, professores universitários em missão comentarista podem ser tão cómicos como os profissionais da comédia.
Adiciono um elemento de autocrítica: por mais que me queira vigiar e não cair na caricatura, é difícil resistir. Certamente que muita desta gente faz outras coisas respeitáveis e valiosas, merece consideração quando se dedica a outras actividades. Mas como é que tantos, ao mesmo tempo, aceitam transfigurar-se em representantes da tagarelice, em veículos de comunicação onde tudo é somehow nothing? Presumo que deve haver uma suspensão do pudor e da crítica, tal como eu experimentei a suspensão da credulidade.
Quero dizer: habituámo-nos de tal modo a este discurso que nos é oferecido como análise e comentário políticos que só quando nos colocamos numa atitude de vigilância e de interrogação das regras do jogo é que ele nos parece somehow nothing. “Chatter”, uma palavra inglesa, encontra aqui a sua significação. Como traduzi-la? Conversa vazia ou tagarelice, em português; bavardage, em francês; garrulitas, em espanhol; Geschwätz, em alemão; mataiologos, em grego: aprendo estas e outras traduções possíveis na introdução de um livro de um americano sobre “linguagem e história em Kierkegaard”.
Como é que tanta gente consegue fazer desta tarefa que consiste em produzir um discurso vazio (não tinha necessariamente de ser assim, mas é-o efectivamente) uma actividade prestigiada e considerada de interesse público? Como evitam que chegue o momento em que deveriam sentir aversão pelo papel que desempenham, pelo somehow nothing a que se entregam, às vezes com tanto ênfase que parecem investir naquele vazio a plenitude dos grandes momentos da vida? Como é que gente com reputações a defender e ciência a transmitir aceita fazer o jogo do ócio intelectual? Haverá certamente uma explicação, mas não é bonita de se ver.
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