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domingo, 4 de março de 2018

A VISÃO MARCELISTA DA DITADURA – JOÃO VARELA GOMES (1924/2018)

por estatuadesal

(Por Soares Novais, in a Viagem dos Argonautas, 04/03/2018)

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O presidente Marcelo, sempre lesto a falar sobre tudo, demorou 48 horas a apresentar condolências à família de João Varela Gomes – “O primeiro capitão de Abril”. Em escassas três linhas, o filho do escolhido por Salazar para ser governador-geral de Moçambique invocou “a sua militância cívica, em particular, a sua consistente luta contra a ditadura constitucionalizada antes do 25 de Abril de 1974”, pois assim redefine Marcelo o fascismo português.

Marcelo, como se vê, disse coisa pouca sobre uma figura central do combate à ditadura. O coronel João Varela Gomes (93 anos) foi um revolucionário, um consequente militante antifascista, um militar com biblioteca, um cidadão singular.

Cresci a ouvir falar dele e da sua luta sem tréguas ao Estado Novo, mas só o conheci pessoalmente em Maio, Maduro Maio de 2006.

Por essa altura preparava a edição de “Vasco sempre” e José Viale-Moutinho, que assumiu a coordenação desse livro-tributo a Vasco Gonçalves, foi quem me proporcionou esse encontro com “o primeiro capitão de Abril”, um dos conspiradores da Sé (1959) e o herói militar do assalto ao Quartel de Beja (1) (1961).

João Varela Gomes recebeu-nos na sua modesta casa, no aristocrático Bairro da Lapa. A conversa com Varela Gomes, e sua mulher Maria Eugénia (2), (e)terna cúmplice de todos os combates, prolongou-se por várias horas e foi, para mim, uma lição de vida.

Perseguido, preso, torturado, expulso do Exército antes do 25 de Abril, João Varela Gomes partiu para o exílio quando “o mês de Novembro aqui chegou”; e abriu alas para o regresso dos velhos Donos Disto Tudo (DDT). A eles e aos novos DDT que hoje mandam no país.

Uns e outros, tal como a rapaziada do Caldas, odiavam João Varela Gomes e nunca lhe perdoaram o seu combate por uma sociedade livre dos vampiros que “comem tudo e não deixam nada”; e, também, nunca esqueceram o facto de Varela Gomes, à frente de um exército constituído por centenas de operários da Sorefame, ter retirado o nome de Salazar da ponte sobre o Tejo e de lhe ter atribuído o nome de “Ponte 25 de Abril”.

Por isso, anteontem, na Assembleia da República, o CDS/PP rejeitou o voto de pesar proposto pelos partidos de esquerda. Estou certo que João Varela Gomes aplaudiria a rejeição de tal gente.

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(1) Manuel Serra foi o líder civil do Golpe de Beja. Após o seu falhanço, o Estado Novo sentou no banco dos réus 86 combatentes antifascistas. Serra foi defendido pelo advogado Francisco Sousa Tavares. Manuel Serra destacou-se com dirigente da Juventude Operária Católica e protagonizou, a seguir à Revolta da Sé, uma espectacular fuga da Embaixada de Cuba, vestido de padre. Após o 25 de Abril aderiu ao Partido Socialista, a convite de Mário Soares. Todavia, depois de ter obtido 44% dos votos dos congressistas no I Congresso do PS em liberdade, ao apresentar uma lista à Comissão Nacional contra a proposta de Soares, acabou por abandonar o partido em Dezembro de 1974. Fundou a Frente Socialista Popular que não vingou. Acabou por abandonar a vida política activa. Morreu a 1 de Fevereiro de 2010, em Setúbal. Tinha a seu lado sua mulher, a advogada Marinela Coelho. Conheci-o no “Verão Quente” e fiquei fascinado pelo brilho quase adolescente dos olhos de um homem bom que hoje está injustamente esquecido.

(2) O ano de 2016 foi particularmente trágico para João Varela Gomes. O seu filho Paulo (Varela Gomes), escritor, critico de arte, professor universitário, cronista, apresentador de documentários televisivos, morreu a 30 de Abril, com cancro, e a 22 de Novembro faleceu a sua companheira. Maria Eugénia foi uma figura marcante da resistência antifascista e da solidariedade com os presos políticos.

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