por estatuadesal
(Francisco Louçã, in Expresso, 03/03/2018)
As eleições deste domingo vão colocar um ponto final no ciclo das forças políticas do centro e podem levar a uma aliança entre Renzi e Macron que vai ameaçar o grupo socialista no Parlamento Europeu
É já domingo que as urnas italianas vão espalhar mais um susto por toda a Europa (e ainda poderia haver um improvável sismo no referendo do SPD alemão sobre a nova coligação com Merkel). É a lei de Murphy da União: cada eleição consegue ser sempre pior do que a anterior. Ganhará o partido de Beppe Grillo ou o de Berlusconi, resistirá Renzi, crescerá o novo condottiere fascista, como se combinarão entre si? Só as perguntas dizem tudo. Mas vale a pena olhar também além do susto para a saúde do centro e para as consequências da sua doença para a União Europeia.
Fim do ciclo do centro
Será uma primeira prova do novo sistema eleitoral, estranho como sempre são estas engenharias eleitorais: 36% dos deputados e senadores são eleitos em círculos uninominais e os restantes em listas regionais ou nacionais. Quem tem 18 anos já vota para o Parlamento (para o Senado tem de ter 25), só podendo ser eleito quem tiver mais de 25 anos (no caso do Senado, 40). Ora, fossem estes mecanismos o único problema e a Itália teria uma eleição típica do seu oscilante regime, como desde o desvanecimento dos seus pilares históricos, a Democracia-Cristã e o Partido Comunista Italiano (PCI). Mas o princípio de Murphy faz das eleições de amanhã a inauguração de um novo mapa.
O caso é que o regime é abalado pela degradação das alternativas que governaram nas últimas décadas. Estas eleições, aliás, são a consequência de uma aventura de Matteo Renzi, que lançou um referendo para reforçar o seu poder e perdeu, criando um vazio político que revela o fim do ciclo do centro e entrega o poder à direita.
Longa foi a viagem do PCI, reinventado como Partido Democrático, para chegar a formar o Governo que aplicou as reformas neoliberais. Correndo em frente, o seu chefe, Renzi, aposta agora numa afirmação identitária europeísta, procurando imitar Macron na ideia de uma refundação miraculosa que criasse os Estados Unidos da Europa. Ao fazer esta escolha coloca o eurocratismo no boletim de voto e arrisca a sua humilhação.
A direita de volta ao passado
A queda eleitoral do centro colocaria Renzi na margem do jogo coligacionista, sendo que as sondagens sugerem que ninguém formará governo com facilidade: quem pode ter mais votos, o 5 Estrelas, ficaria longe da maioria, o PD ainda mais. Por isso, é a recomposição das direitas que se tem tornado o segundo elemento murphista de domingo. Essa transmutação tem duas entoações. A primeira é a deslocação das direitas para um vago euroceticismo, tingido de promessas de tensão com os tratados europeus. A segunda é a concentração transformista na recusa dos refugiados.
Assim, as direitas radicalizam-se e ressurge mesmo a estética de figurações fascistas: Matteo Salvini (na foto), o chefe da Liga Norte, de terço na mão, a jurar sobre a Constituição numa praça de Milão, fingindo uma precoce tomada de posse e fazendo a multidão jurar com ele, é o ícone desta nova direita. Salvini ganhou os seus galões tornando-se o arauto do horror ao estrangeiro, no que vai arrastando outros partidos, prometendo também romper com o euro. Berlusconi, com a sua Forza Italia, estabeleceu um compromisso de pré-coligação com ele, mas disputam entre si quem ficará à frente e designaria o primeiro-ministro, mecanismo garantido para que as direitas concorram para criar ódios e fazê-los votar.
O difuso Movimento 5 Estrelas exibe entretanto novas dificuldades: a sua proposta mais inovadora é o já célebre rendimento básico universal, prometido pelo valor aproximado de 25 euros por mês, tamanha generosidade. Se as direitas se juntarem e o centro cair, o 5 Estrelas fica pendurado.
A minha conclusão: populismo, são todos estes partidos. Já só se disputam eleições destas em modo populista. Uma esquerda que quer contrariar a maldição, Potere al Popolo, começa a juntar-se entre os destroços, mas ainda lhe falta muito para ser protagonista (será tema para outro artigo).
O destino é para baixo?
A Itália em risco no concerto europeu? Fosse só isso. A queda de Renzi revela outra faceta desse temor, também de impacto duradouro: ele promete juntar-se a Macron nas eleições europeias de 2019 e criar um novo grupo em Estrasburgo, pilhando os restos dos Verdes e dos Liberais e dividindo os socialistas. Esta ameaça ao PS europeu não é menor, pode torna-lo um grupo pequeno, comparado com o das esquerdas.
Um apanhado das últimas duas décadas é constrangedor para os socialistas e sociais-democratas e demonstra como Macron pode mesmo reduzi-los a um testemunho saudoso: comparando eleições desde o virar do século, na Grécia perderam 35 pontos, na República Checa caíram de 20 para 7%, na Holanda de 25 para 6%, em França de 30 para 7%, em Espanha de 34 para 22%, na Alemanha de 40 para 20,5%, o pior resultado desde a II Guerra Mundial e que pode ainda piorar.
Em 2017, os sociais-democratas ou aparentados perderam os governos da França, Áustria e República Checa, só mantendo os de Portugal, Suécia, Grécia, Malta e Eslováquia (aqui com o escândalo de um jornalista assassinado) entre os 27 países da União.
A ameaça de Macron é, portanto, feroz: formando o seu grupo internacional, fecharia o tempo em que democracia-cristã e os sociais-democratas partilhavam o poder europeu e deixaria a Comissão e as instituições sob pressão da metamorfose da direita, com a pulverização do centro. Como a experiência italiana demonstra, isso pode exprimir o reforço das forças centrífugas. Na Hungria, Polónia, República Checa e Áustria, essas forças já são Governo, o que lhes dá poder bloqueador no Conselho Europeu; fazem parte do Partido Popular Europeu, com Berlusconi e Orbán ao lado de Paulo Rangel, Nuno Melo e companhia; noutros países condicionam a evolução política, como na Alemanha.
Com o prazo curto até ao verão de 2019 e as eleições europeias, é um mundo novo que se está a desenhar. Trump de um lado e Berlusconi ou Salvini dentro de casa a celebrarem o murphismo, cá se vai cantando e rindo.
O mercado, tão gostoso
Foi um relâmpago de choque e pavor, mas afinal não era tão difícil de imaginar. Kylie Jenner escreveu num tweet depois do jantar que estava farta do Snapchat, uma aplicação de partilha de imagens, e em consequência a cotação da empresa caiu 6% no dia seguinte, reduzindo a capitalização em 1300 milhões de dólares. Jenner tem vinte anos e uma carreira brilhante: desde os dez que é uma estrela da série “Keeping up with the Kardashians”, outra família de socialites, tendo-se tornado, entretanto, uma empresária de sucesso, com uma marca de cosméticos e roupa. Ser uma reality star de sucesso é o que sobra de espírito empresarial no século XXI e o mercado treme quando a star suspira.
Mercado mesmo, no sentido mais líquido: Jenner oficia num reduto de 25 milhões de seguidores no Twitter e de 100 milhões no Instagram. É mercado porque são os seus consumidores, essas redes tornam-se uma segunda pele, a voz que fala, o modo de atenção ao mundo. Distorce, aliena, torna-se uma forma obsessiva de reconhecimento social? Isso é precisamente o que é o mercado. Lembre-se de Chico Buarque, no seu último disco, a cantiga em dueto com Clara Buarque: “Se dane o evangelho e todos os orixás/ Serás o meu amor, serás amor a minha paz/ Consta nos mapas, nos lábios, nos lápis/ Consta no Google, no Twitter, no Face/ No Tinder, no WhatsApp, no Instagram/ No e-mail, no Snapchat, no Orkut, no Telegram/ No Skype”. O mercado é esta virtude virtual, esta lista de aplicações, sociedades sombra e rituais iniciáticos, só não sei se garante o circuito do amor, talvez Chico e a sua neta também desconfiem desse trânsito. O facto é que, com umas dezenas de carateres, Jenner assustou o mercado.
Já ouço as vozes contristadas: nada disso é o mercado com a sua inteligência e conhecimento, é só uma falha, uma crispação, uma perturbação que passa. Foi um engano, em resumo. Toda a ignorância é atrevida, só posso concluir. Há no mar uma tonelada de plástico por cada tonelada de peixe, suspeito que é mesmo o mercado. Há no espaço virtual uma pilha de capitais fictícios que jogam em bitcoins e outros produtos e mistificações, é mesmo o mercado, que organiza o perigo porque é ele o perigo.
Assim se pode compreender o incidente, Jenner twitou e o mercado estremeceu. Mas, calma, ela twitou depois a explicar que estava só a brincar.
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