por estatuadesal
(Por Benjamim, in Expresso Diário, 23/03/2018)
“O concerto até pode ter arrancado de forma bastante atabalhoada, quase como se estivéssemos a assistir ao descarrilar de uma gigante locomotiva a vapor em câmara lenta, mesmo diante dos nossos olhos. A banda entrou num tom, o piano de Dylan entrou noutro bastante diferente. Entre cada música havia um músico a tocar para seu lado, numa espécie de cacofonia mágica permanente. A banda, magnífica, permanecia tranquila naquele número incendiário entre cada música – mais cacofonia.” Bob Dylan tocou esta quinta-feira em Lisboa e pedimos a Benjamim, músico que você deve ouvir se ainda não o fez, para fazer a crítica. E Benjamim escreveu-nos um grande texto.
A importância de ser Bob Dylan
O primeiro disco que comprei em vinil foi o “Blood On The Tracks”, de 1975, 15º álbum de estúdio de Bob Dylan. Mudou a minha vida para sempre. Mas começou por mudar a adolescência primeiro. Senti logo que tinha descoberto ouro, uma dimensão da minha existência que eu ainda não tinha experimentado.
A minha simples existência parecia diferente ao som destas canções, o ar parecia mais leve e o calor do verão mais intenso. “Tangled Up In Blue” para arrancar e “Simple Twist Of Fate” para me atirar ao chão de seguida, logo aos primeiros acordes. É o disco da separação e toda a gente sabe que a separação é lixada. Tal como são lixadas canções como “Idiot Wind” ou “Shelter From The Storm”, que não podiam ser mais diferentes uma da outra. Mais valia pôr aqui o nome de todas as faixas do álbum porque são todas perfeitas. A fórmula não poderia ser mais direta, três ou quatro acordes em sequência perfeita e aquele tom do tipo que foi enganado pelo mundo inteiro e a quem todos devem, aquela voz que alterna entre a raiva quase birrenta e o homem que nos abre o coração só para nós todos podermos espreitar lá para dentro, sem recorrer a anestesia. A linha ténue entre o cinismo e a sinceridade. Entre o convite e a aspereza. Entre o amor e o veneno mais letal.
“Idiot wind / Blowing every time you move your mouth / Blowing down the back roads headin' south / Idiot wind /Blowing every time you move your teeth / You're an idiot, babe / It's a wonder that you still know how to breathe”, canta Dylan num disco supostamente escrito para a ex-mulher.
A primeira vez que o vi ao vivo levei uma ex-namorada que não o gramava nem por nada. A meio do concerto ficou com uma enorme enxaqueca causada pela voz de “cana rachada” do meu herói. Como disse Nicolau da Viola, “não se ama alguém que não ouve a mesma canção”.
Dez anos depois voltei para o ouvir, esta quinta-feira, desta vez num Pavilhão eternamente Atlântico completamente esgotado e com os meus pais e irmão (que me ofereceu o bilhete) como fiel e inabalável companhia. Não houve dores de cabeça e mesmo a voz me pareceu bem melhor do que naquela noite em Algés. Não era suposto esforçar-se para nos seduzir nem tão pouco cantar as canções na forma que as conhecemos originalmente e que aprendemos rapidamente a adorar, já deveríamos saber ao que vínhamos. Era apenas suposto que aparecesse e cantasse as velhas canções para nós. Não foi preciso “olá” nem “obrigado”, aquelas quase duas horas bastaram assim, ele no palco, nós sentados a assistir e eu a tentar ver do fundo do pavilhão, agradecendo a épica resistência capilar que me permitia identificar Dylan sem margem para erros a quilómetros de distância do palco. A sua mera presença era suficiente. Afinal este foi o homem que providenciou a primeira erva que os Beatles fumaram, o homem que mudou o curso da história da música, o homem a quem chamaram de Judas, o herói da folk que trocou a guitarra acústica pela elétrica, aquele que nunca quis ser a voz da América mas que acabou por ser a voz de tanta gente espalhada pelo mundo fora, o homem que pôs os dedos em tantas feridas, o homem que passou por várias conversões de fé e, talvez mais importante, o homem que me fez poder dizer que li e por vezes realmente compreendi no meu íntimo um prémio Nobel da literatura. É que os discos foram os meus melhores livros.
Eu consigo passar horas a ler as letras do Dylan em silêncio, até as tenho em forma de livro. Mas se um poema traz uma melodia agarrada, então é porque é ainda melhor. Porque tudo é melhor com música.
Ainda noutro dia alguém me dizia que as canções não podem ser lidas sem o contexto da música, ao contrário dos romances, da poesia e da dramaturgia. Tudo géneros literários que sobrevivem ao texto em estado puro, ao contrário da canção que foi escrita para trazer uma melodia sempre agarrada. Tudo muito discutível, eu consigo passar horas a ler as letras do Dylan em silêncio, até as tenho em forma de livro. Mas se um poema traz uma melodia agarrada, então é porque é ainda melhor. Porque tudo é melhor com música – os poemas, o cinema, o teatro, até os livros. Até Dylan é melhor com música. E ele, Dylan, fez-me perder em cada palavra que escreveu e cada frase que cantou desde o primeiro dia que o ouvi. E, quer queiram quer não, essa é a verdadeira essência da poesia. A sua versão mais antiga – a original. O verdadeiro trovador. Ele que me fez viajar como muito poucos fizeram. Ele que escancarou a cabeça de um puto que só queria tocar piano e que acabou a escrever canções à guitarra. Para ele foi um prémio Nobel, para mim foi um prémio de consolação de quem era aluno mediano a Língua Portuguesa. Tantos poetas gravaram discos a declamar a sua própria poesia, Bob Dylan simplesmente aproveitou o tempo de estúdio melhor que todos os outros.
O que Bob Dylan tocou
O concerto até pode ter arrancado de forma bastante atabalhoada, quase como se estivéssemos a assistir ao descarrilar de uma gigante locomotiva a vapor em câmara lenta, mesmo diante dos nossos olhos. A banda entrou num tom, o piano de Dylan entrou noutro bastante diferente. Entre cada música havia um músico a tocar para seu lado, numa espécie de cacofonia mágica permanente. Lá entrava a bateria e lentamente arrancavam as canções como se a velha locomotiva precisasse do seu tempo para ganhar embalo e lá vinha aquela voz com 76 anos que levava a minha alma ao rubro, majestosa, constantemente a balançar entre o tom melodioso mais ou menos grave e a fala de quem quer debitar as palavras de maneira absolutamente clara. Parámos em todas as estações e apeadeiros ao final de cada canção – mais cacofonia mágica. Cada troço de linha percorrido era uma pequena vitória que se ia desenrolando pela noite. A banda, magnífica, permanecia tranquila naquele número incendiário entre cada música – mais cacofonia –, eu ficava em pulgas para perceber qual seria a próxima canção na lista. Entre grandes êxitos (no fundo são quase todas), umas músicas estavam mais reconhecíveis que outras: “Blowin’ In The Wind” (que foi encore juntamente com “Ballad Of A Thin Man”) foi servido em forma de blues já no encore, mas na verdade também já não há paciência para a versão original.
“Don't Think Twice”, “It's Alright”, “Tangled Up In Blue” e “It Ain’t Me, Babe” também estiveram especialmente disfarçadas, típico do mestre que não quer passar a vida a revisitar a versão original das suas obras, é simplesmente aceitar a necessidade de passar a vida a reinventar as melodias perfeitas das suas próprias canções. Se fosse fácil não teria o mesmo encanto. “Desolation Row” foi um dos momentos mais mágicos para a fila F da plateia C, mas houve outros grandes momentos como “Highway 61 Revisited”, “Simple Twist Of Fate” ou “Trying To Get To Heaven”, da obra-prima de 1997 “Time Out Of Mind”, álbum que lhe valeu três Grammys.
Um dos pontos altos da noite foi o momento em que o escritor de canções passou a ser crooner, largou o piano e assumiu o centro do palco com “Why Try To Change Me Now”, original de Cy Coleman e Joseph Allan McCarthy que Sinatra gravou para a Columbia em 1952 e que Dylan gravou em 2015 para a mesma editora no álbum “Shadows In The Night”. Não sendo propriamente Frank, Bob levou a sala ao rubro já perto do final do concerto.
O ambiente não era explosivo, era até de grande tranquilidade. Longe dos tempos em que Dylan e a banda eram corridos do palco por multidões indignadas pelo sacrilégio de transformar em profano algo tão sagrado como as canções folk. Era um ambiente para famílias como a minha, diferentes gerações de fãs que se juntaram para ver uma lenda viva da música mundial. Colecionadores de bilhetes, potenciais compradores de t-shirts. Eu investi as minhas fichas em imperial. Uma nota para o péssimo som que aquele Multiusos teima em apresentar, pouco condizente com os preços dos bilhetes. Para algum público faltou provavelmente temas como “Like a Rolling Stone”, mas deve ser tramado gerir repertório para um músico que está em tournée desde 1988 naquela que é conhecida como a Never Ending Tour.
O que Bob Dylan não tocou
A pausa mais longa foi em 1997, durante três meses, devido a problemas de saúde. Por mim também poderia ter ido parar a “Nashville Skyline”, álbum que abre com aquele dueto bêbedo com Johnny Cash em que ambos levam “The Girl From The North Country” cada um para seu lado, da melhor maneira possível. Ou “Oh, Sister”, de “Desire”. Ou “4th Time Around”, “Sad Eyed Lady Of The Lowlands”, “Just Like a Woman” ou “I Want You”, de “Blonde on Blonde”. Ou qualquer canção de “The Times They Are a-Changin’”. Que exigir de um escritor de canções que gravou 38 álbuns de estúdio, praticamente todos eles lendários? O homem que fez dos direitos civis canção intemporal para nos lembrar que o mundo já foi diferente e nada nos garante que vá melhorar. Principalmente num mundo em que Donald Trump é presidente dos Estados Unidos. Um mundo em que migrantes morrem afogados às portas da Europa enquanto nós assistimos no sofá, 70 anos depois da maior matança à escala global mesmo aqui ao lado. Também é esse o poder de Dylan, por muito que ele não queira – faz parte da nossa consciência coletiva.
Fora do recinto, após o concerto, um imitador de Bob Dylan levou uma pequena multidão ao delírio com versões mais próximas do original de algumas das canções que Dylan tinha cantado momentos antes e relembrou a razão de se terem juntado mais de 13.000 pessoas nesta noite – pelas canções, que ficam para sempre, que nos acompanham pelos anos fora e que nós adoramos cantar de pulmão aberto. Porque as canções serão sempre nossas e isso deixa-nos aquele que é, para mim, o maior escritor de canções de todos os tempos. Eu, que nasci no mesmo dia que ele, só lhe posso agradecer ter aparecido na minha vida.
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