Translate

domingo, 25 de março de 2018

Lisboa: o estranho caso do Demónio encontrado na casa da fadista Severa

por admin

No edifício da Mouraria, em Lisboa, onde terá vivido a fadista Maria Severa Onofriana, falecida em 1846, uma escavação arqueológica descobriu um curioso vestígio do passado medieval da cidade e da evolução das superstições. Mais do que um molde, este pequeno artefacto é o reflexo de como a própria cidade era uma encruzilhada de crenças e superstições que raramente se encontram no contexto arqueológico, defendem os arqueólogos Tânia Casimiro, do Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova de Lisboa, e António Marques, do Centro de Arqueologia de Lisboa.

A Severa

A peça emergiu num sector de Lisboa tradicionalmente dedicado às comunidades muçulmanas, autorizadas, desde o reinado de Dom Afonso Henriques, a permanecer em bairros específicos da urbe. Encontrado num estrato correspondente ao século XIV, só após a produção de um molde de silicone foi possível obter a descrição da figura antropomórfica ali representada, com feições quase grotescas e o topo da cabeça coroado com dois chifres. Os membros superiores terminam no que parecem ser duas garras e os inferiores em cascos, destacando-se o seu carácter marcadamente sexual.

Desenho de Luísa Batalha

Embora raras na Idade Média, as representações conhecidas do demónio coincidem com a figura deste molde. No levantamento realizado sobre manifestações demoníacas na Idade Média em Portugal, a historiadora Lurdes Rosa notou igualmente que a maior parte dos demónios estão associados ao registo de exorcismos e muitos visitam mulheres para encontros sexuais, as suas vítimas preferenciais, numa alegoria à crença de que o diabo entra pelos buracos do corpo.

A Severa

A adoração de imagens não canónicas foi proibida desde o reinado de Dom João I, mas certamente não foi extinta. “Raramente os lados ocultos da subjectividade humana se consubstanciam. Tivemos a sorte de nos depararmos com uma dessas raras realidades”, diz Tânia Casimiro, em relação à Casa da Severa.

Casa da Fadista SeveraCasa da Fadista Severa

Um dos desafios da interpretação desta peça é a atribuição cultural: teria pertencido a um membro da comunidade muçulmana ou seria, ao invés, propriedade de um cristão? As referências documentais e literárias que se conhecem são todas referentes às comunidades cristãs e estas imagens alimentariam um imaginário plasmado na obra de Gil Vicente. Quem não se recorda do desbocado diabo do “Auto da Barca do Inferno”: “À barca, à barca, houlá! / que temos gentil maré!”?

Quem era Maria Severa, a Fadista?

Através do seu registo de baptismo a 12 de Setembro de 1820, na Paróquia dos Anjos, registamos a data de nascimento de Maria Severa Onofriana a 26 de Julho de 1820, o local do seu nascimento terá sido na Rua da Madragoa (actual Rua Vicente Borga nº. 33), onde sua mãe tinha uma taberna. Filha de Severo Manuel de Sousa, natural da freguesia de S. Nicolau, em Santarém, e de Ana Gertrudes, nascida em Portalegre. O casal havia celebrado matrimónio a 27 de Abril de 1815, na Paróquia de Santa Cruz da Prideira de Santarém.

Severa faleceu muito jovem. O assento de óbito indica a sua morte no dia 30 de Novembro de 1846 na Rua do Capelão, apoplética e sem sacramentos, com a idade de 26 anos e solteira. A fadista foi sepultada no Cemitério do Alto de S. João. Para além destes dados pouco mais está comprovado sobre a vida da cantadeira, uma vez que a maioria das informações provém dos reduzidos relatos orais de contemporâneos, casos de Luís Augusto Palmeirim, Miguel Queriol e Raimundo António de Bulhão Pato.

O poeta Bulhão Pato, que a conheceu pessoalmente, deixou o seguinte testemunho da sua personalidade: "A pobre rapariga foi uma fadista interessantíssima como nunca a Mouraria tornará a ter!... Não será fácil aparecer outra Severa altiva e impetuosa, tão generosa como pronta a partir a cara a qualquer que lhe fizesse uma tratantada! Valente, cheia de afetos para os que estimava, assim como era rude para com os inimigos. Não era mulher vulgar, pode ter a certeza" (cf. Júlio de Sousa e Costa, "Severa").

Por seu lado, Luís Augusto Palmeirim confessa que viu e falou com Severa apenas uma vez, mas que "foi o bastante para nunca mais me esquecer da esbelta rapariga, que tinha lume nos olhos, uma voz plangente e sonora, e, apesar destas aparentes seduções, uns modos bruscos e sacudidos, que avisavam os seus interlocutores a porem-se fora do alcance «de um revés de fortuna»".

Tendo-a visitado numa casa onde então morava, no Bairro Alto, descreveu posteriormente, no seu livro "Os excêntricos do meu tempo", esta visita da seguinte forma: "Quando entrei em casa da Severa, modesta habitação do tipo vulgar das que habitam as infelizes sua congéneres, estava ela fumando, recostada num canapé de palhinha, com chinelas de polimento ponteadas de retrós vermelho, com um lenço de seda de ramagens na cabeça e as mangas do vestido arregaçadas até ao cotovelo.

Era uma mulher sobre o trigueiro, magra, nervosa, e notável por uns magníficos olhos peninsulares. Em cima de uma mesa de jogo estava pousada uma guitarra, a companheira inseparável dos seus triunfos; e pendente da parede (sacrilégio vulgar nas casas daquela ordem) uma péssima gravura, representando o Senhor dos Passos da Graça!"

Miguel Queriol dá nota de uma visita nocturna de um grupo de boémios ao Palácio do Conde de Vimioso, na qual Severa cantou o Fado, acompanhada à guitarra por Roberto Camelo. Em artigo publicado no jornal "O Popular" registou os seguintes comentários: "Se bem me recordo era uma rapariga esbelta, bem apessoada, cabelo escuro e farto, com um ar de desenvoltura sem ultrapassar as conveniências da sua posição para com quem a favorecia, trajando limpa mas modestamente, sem fazer lembrar a desgraça da classe em que menos o vício que a miséria a havia precipitado, e que pela sua timidez se mostrava contrafeita no meio social em que ali se achava."

Maria Severa Onofriana, celebrizou-se como "Severa", tornada o ícone de primeira fadista pelos seus amores e pelos fados que cantava, tocava e dançava, no bairro da Mouraria.

Os locais de actuação de Severa não estão ainda identificados, mas acredita-se que estão relacionados com os circuitos de prostituição, em particular do Bairro Alto e da Mouraria.

Severa fez também apresentações em festas aristocráticas, facto tornado possível pela sua ligação ao conde de Vimioso, descrição presente no relato de Miguel Queriol no jornal "O Popular", onde relata a apresentação de Severa no Palácio do Conde.

Sem comentários:

Enviar um comentário