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domingo, 4 de março de 2018

Maria Coroada – a profetiza da Granja do Tedo



















Estamos em Granja do Tedo, Tabuaço, distrito de Viseu, entre os anos 1840 e 1847. Aí se desenvolve um estranho culto e uma estranha seita, que ficou conhecida como “cisma da Granja do Tedo”.

Segundo as informações que chegaram até hoje, Maria das Neves apresentava, juntamente com esta rebeldia religiosa, um projecto de transformação social, defendendo o acesso gratuito das mulheres ao ensino e a necessidade de protecção social dos mais frágeis, os pobres, os inválidos, os velhos. Para assistência a todos os carenciados, deviam ser instituídos asilos custeados pelos membros da comunidade, particularmente os lavradores para, posteriormente, ganharem autossubsistência. O culto foi proibido em 1847 por ordem do administrador do concelho de São Cosmado, tendo sido confiscados livros, estandartes, alfaias agrícolas.

Maria das Neves pode, de algum modo, ser considerada uma feminista “avant-la-lettre” pois, apresenta uma clara consciência da situação discriminatória em que as mulheres se encontravam, expressa nas suas preocupações com a educação e no facto de ter vestido a sua filha de homem, tentando, desse modo, evitar que esta se sujeitasse a tudo o que “menorizava” as mulheres. Baptizada com o nome Maria Trindade, adoptou, posteriormente, o nome António das Neves. Trabalhou à jorna na região do Douro e, mais tarde, como empregada de comércio. Quando a sua situação levantou suspeitas pela ausência de documentos relativos à vida militar, foi levada a tribunal mas saiu em liberdade, fruto das boas referências transmitidas por quem foi ouvido em testemunho. A partir daí, readquiriu a sua “condição” de mulher.

Estes acontecimentos da segunda metade do século XIX têm suscitado, ao longo do tempo, a curiosidade de alguns investigadores e foram recentemente evocados no projecto teatral de Susana C. Gaspar “Mulher-Homem e Coroada” que foi apresentado em 2014, no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra.

É inegável o seu interesse histórico e antropológico, como relato da vida de duas mulheres, mãe (a sacerdotisa) e filha (António das Neves), que pode ser um bom motivo para a nossa reflexão sobre o passado e sobre os “artifícios” a que as mulheres necessitaram de recorrer para realizarem tudo o que lhes era negado, desde o trabalho à educação. Para além disso, como exemplo de marginalidade em acção, mostra-nos o que ficou invisível, dá voz ao que ficou silenciado e, desse modo, permite inscrever novos argumentos ao actual debate sobre a igualdade.

No seu tempo, Maria Coroada não saiu vencedora. Mas, hoje sabemos que existiu e sabemos o que fez. E isso, só por si, contém uma infinidade de possibilidades.

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