Há meio século atrás, no anfiteatro da Faculdade de Direito de Lisboa, Marcelo Caetano ensinava que um processo podia ser anulado por simples “vício de forma”.
- 4 Fevereiro, 2018
- Carlos Fino, em Brasília
Na rebeldia ignorante dos meus verdes anos, todo eu me insurgia: como era possível – interrogava-me, indignado – que a forma fosse mais importante que o fundo da questão?! Na altura, isso parecia-me um pretexto da ditadura para, por essa via, proteger interesses inconfessáveis.
Cinquenta anos volvidos, assistindo a numerosos casos, em Portugal e no Brasil, em que procuradores e juízes invocam o fundo moral das questões para justificar o desrespeito por normas secularmente consagradas destinadas a garantir os direitos da defesa, a minha preocupação é a inversa: como é possível que, em plena democracia, juízes e procuradores se arvorem – com a ajuda dos media – em justiceiros e acabem até, nalguns casos, por se transformar em instrumento ao serviço de objectivos políticos, como se a justiça fosse a continuação da política por outros meios?
As corregedorias internas ou os conselhos superiores das magistraturas oferecem uma primeira via de recurso. Mas sendo eles de natureza predominantemente corporativa, é pouco provável que venham a decidir contra os seus pares. Se o círculo se fecha, onde está a saída?
Em artigo publicado esta semana no semanário Expresso, o jornalista e escritor Miguel Sousa Tavares propõe pôr termo à independência e autonomia funcional do Ministério Público, reforçando a cadeia hierárquica de subordinação face a um PGR politicamente responsável perante o governo (Como ver claro no meio de tanto nevoeiro e fogo-de-artifício?).
Com todo o respeito pela opinião do meu amigo e ex-colega de Direito e profissão, fazer isso seria um retrocesso. O caso do Brasil está aí para o provar. Enquanto o Ministério Público Federal não obteve – com a Constituição de 1988 – a autonomia de que hoje desfruta, muitos casos de crime comum e corrupção não chegavam sequer a ser investigados.
Uma autonomia – note-se – ainda assim limitada, uma vez que o chefe do executivo federal manteve o poder discricionário de escolher o Procurador Geral da República. Mas que (suprema ironia!) aumentou com Lula, quando este aceitou passar a fazer a escolha a partir da lista tríplice apresentada pelos próprios procuradores.
Então, como evitar ou limitar os excessos?
Se proibições não resolvem, a solução óbvia é aumentar a transparência e a participação da sociedade civil. Por exemplo, abrindo as sessões das corregedorias e/ou dos organismos reguladores e fiscalizadores a organizações da sociedade civil como a Ordem dos Advogados, reforçando e ampliando simultaneamente as possibilidades de recurso. Só isso nos pode defender das fake news, dos fake process e das fake sentences.
Em democracia não me parece haver outra alternativa.
Na certeza, porém, de que sem o respeito pelas normas consagradas que garantem – desde a Grécia! – os direitos e liberdades dos cidadãos face aos abusos e arbítrio do poder, é a própria democracia que está em perigo.
Inaceitável, por exemplo, que juízes e/ou procuradores se pronunciem publicamente antes do exame das causas, alimentando campanhas de imprensa em que o resultado já está adquirido antes mesmo do julgamento. Ou que, já em juízo, o magistrado não observe a devida imparcialidade e em vez de “indiferente investigador da verdade” acaba por se “transformar em inimigo do réu” – como já no século XVII assinalava César Beccaria (Dos delitos e das penas).
Em política, Marcelo Caetano estava errado, mas quanto ao direito, tinha toda a razão – não há processo justo se a forma estiver viciada – os fins não justificam os meios e em caso de dúvida, pro reo.
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