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sexta-feira, 30 de março de 2018

O garfo do Tavares

Opinião

Francisco Seixas Da Costa

Hoje às 00:01

No final dos anos 70, numa visita de trabalho a Jerusalém, permiti-me comentários de analista sobre o conflito israelo-palestino. Um diplomata local retorquiu-me: "Sem aqui ter nascido, é impossível ter uma noção exata da realidade". Poucos anos depois, numa ida turística a Berlim, ainda em tempo de Guerra Fria, mandei "bitaites" impressionistas sobre a realidade que se projetava no muro. Um berlinense ocidental, com muita memória sofrida, disse-me uma frase idêntica. Um dia, em 2003, em Seul, num almoço com Ban Ki-moon, que me parecia ainda longe de sonhar ser secretário-geral da ONU, fiz juízos de valor sobre as razões no conflito coreano. E lá surgiu de novo a tal máxima. Há dois anos, numa visita à Estónia, procurei desdramatizar, numa conversa com um académico local, a tensão com a Rússia: "Sem aqui ter nascido, é impossível ter uma noção exata da realidade".

Não sei que "exatidão" existia na visão comprometida de todos aqueles meus interlocutores - e tive conversas similares em outros cenários de conflito. Uma coisa tenho por certa: se acaso tivesse falado com quem estava do outro lado da barreira, a narrativa seria contrastante, mas a frase seria porventura a mesma. A cultura emocional modela as razões e, por definição, embota a racionalidade. Mas, na teoria da negociação, também se aprende que as emoções são parte integrante da economia dos conflitos, que nunca se resolvem sem as ter em conta. Por esse motivo, a objetividade do observador distanciado é, as mais das vezes, uma virtude que serve de muito pouco.

Vem isto a talhe de foice, imaginem!, a propósito do Brasil. Há uns tempos, um grande amigo brasileiro, de visita a Lisboa, quis jantar comigo no restaurante Tavares. Perdi o amor à bolsa e verguei-me à memória "ecista" (no Brasil, não há "queirosianos") do local, que também dizia muito ao meu parceiro de refeição. E até lhe apontei a mesa em que tivera lugar uma famosa conversa, embora sem consequências históricas evidentes, entre o antigo presidente Juscelino Kubitschek e o plumitivo conservador Carlos Lacerda. O nosso "papo" ia bom até ao momento em que fiz vir à baila o nome de Lula. O meu amigo tinha sentimentos muito fortes sobre aquela figura. Vi a cara dele ficar encarnada - e não era da pimenta numa qualquer iguaria, nem do calor da sala. Olhando-lhe a mão, vi-o torcer lentamente, com silenciosa fúria, um garfo, até o utensílio ficar em ângulo reto. No instante, percebi que, também ele, me queria dizer, com a sua raiva, que eu não tinha direito a ter uma opinião sobre uma realidade a que não pertencia. Pelo menos, uma opinião diferente da dele...

* EMBAIXADOR

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