Precariedade: esquecido o combate aos falsos recibos verdes?
Depois da introdução, no período da troika, de alterações significativas no regime dos despedimentos e nas indemnizações, era de esperar que a contratação sem termo progredisse. Todavia a relutância dos patrões a assumirem compromissos para o futuro parece ser atávica, e o recurso à contratação a termo e aos falsos recibos verdes continua a pesar no mercado de trabalho.
- 28 Março, 2018
- Contudo, as 27 medidas apresentadas pelo Governo PS em concertação social no passado dia 23 de Março, em aparente sintonia com o BE, são expressamente direccionadas à contratação a termo, omitindo a problemática dos falsos recibos verdes.
E o facto é que até agora a legislação relativa à regularização de falsos recibos verdes tem tido pouca aplicação e um sucesso mitigado nos casos em que se tentou aplicá-la.[i]
Então, como actuar?
Fala-se, é certo, do reforço do número de inspectores da Autoridade para as Condições do Trabalho e de “Reforçar a capacidade dos sistemas de informação para efeitos de fiscalização através de uma articulação estreita entre a ACT, o Instituto da Segurança Social e a Autoridade Tributária e Aduaneira”. Mas é pouco, sobretudo quando é de esperar que a restrição do recurso à contratação a termo se traduza tanto na celebração de contratos sem termo como em refúgio na falsa contratação independente.
Tornar o combate aos falsos recibos verdes uma missão de todo o Governo e de toda a Administração
Não basta rever a redacção da lei orgânica da Autoridade das Condições de Trabalho, o que redundará apenas em mais uma operação de cosmética administrativa, nem confiar apenas nos recursos que lhe estão afectos, que serão sempre escassos.
Aproveitar a capacidade de autorização e de fiscalização já instalada
A Administração Pública autoriza, e até financia o exercício de muitas actividades privadas onde o falso trabalho independente campeia, sendo necessário:
- tolerância zero com os falsos recibos verdes na concessão de autorizações de funcionamento ou na realização de avaliações, o que requer envolvimento dos órgãos reguladores – para não ir mais longe, a Agência de Acreditação e Avaliação do Ensino Superior – ou responsáveis pelo licenciamento[ii];
- atribuição às entidades com poder de fiscalização horizontal ou sectorial – tais como a ASAE, a Inspecção-Geral de Finanças, a Inspecção Geral da Educação e Ciência, a Inspecção Geral das Actividades em Saúde, a Inspecção Geral do Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, a capacidade para levantar autos relativos à existência de trabalhadores a falsos recibos verdes, que poderiam posteriormente ser tramitados pela Autoridade das Condições de Trabalho;
- suspensão ou retirada de benefícios fiscais às entidades – por exemplo às universidades e colégios privados – que incumpram a legislação sobre contratação de trabalhadores.
Afinal de contas os sistemas de garantia de qualidade no exercício de muitas destas actividades exigem que os “colaboradores” estejam devidamente formados, certificados e enquadrados na hierarquia e disciplina das organizações que as desenvolvem. Tem de haver uma concordância entre o enquadramento funcional e o enquadramento laboral.
Articular operacionalmente a Autoridade das Condições de Trabalho, a Segurança Social e a Autoridade Tributária e Aduaneira
Não apenas a nível de sistemas de informação, como se prevê nas medidas do Governo, mas:
- dotando estes organismos de uma doutrina comum, que lhes permita informar em todos os pontos do sistema os prejudicados pelos falsos recibos verdes dos seus direitos e da forma de reagir ao incumprimento da lei, bem como dirigir alertas personalizados aos empregadores, convidando-os a regularizar situações (o Big Brother is Watching You não deve servir só para a limpeza das matas…);
- incentivando a comunicação mútua de relatórios e a formulação de pedidos de intervenção.
De igual forma, parece-me útil envolver na prevenção e denúncia dos incumprimentos os membros da profissão que tem contacto mais regular e maior relevância no aconselhamento dos pequenos e médios empregadores – os Contabilistas Certificados, ex – Técnicos Oficiais de Contas.
É evidente que este pedido de envolvimento não será à partida bem acolhido, mas, até porque muitos destes técnicos acabam por aconselhar os pequenos e médios empregadores quanto à forma de fazer reflectir estas situações na contabilidade e junto da Segurança Social, conviria, através do diálogo com a sua Ordem ou de circularização específica, envolvê-los no esforço de regularização.
Institucionalizar o diálogo com as associações sindicais e as associações de combate à precariedade
Apesar de tudo o que se vai dizendo sobre os sindicatos representarem apenas os interesses dos insiders é útil prever o envolvimento das associações sindicais e das associações de precários quer na apresentação de participações, que já existe, quer na realização de diagnósticos e intercâmbios de informação.
Sem ir excessivamente longe na formalização, julgo que seria útil pedir a cada associação sindical e a cada associação de precários que designe um representante permanente com meios para contacto expedito, junto de cada delegação da Autoridade para as Condições de Trabalho, com vista a acertar, quando possível, uma colaboração no terreno (pode ser mais difícil do que limpar as matas, mas é de tentar).
Não mexer na lei
Salvo os pequenos ajustamentos na legislação que comete atribuições e competências aos vários serviços da Administração Pública (sendo o mais complexo a previsão da possibilidade de levantamento de autos por outras entidades que seguidamente sejam tramitados pela Autoridade das Condições do Trabalho, com os efeitos previstos na Lei 65/2013, alterada pela Lei 55/2017[iii]), e a previsão de outros efeitos do incumprimento, que se deixaram acima enunciados, parece-me que a lei laboral em si deverá, neste domínio, ficar como está.
Diria mesmo que se torna até necessário prever duas válvulas de escape:
- a primeira, que já existe, é manter a possibilidade de recurso ao regime de trabalho temporário, disciplinando-o por forma a evitar abusos, como aliás o Governo aponta nas suas “27 propostas”;
- a segunda é o alargamento da possibilidade de celebração de contratos de trabalho de muito curta duração a actividades como a educação, a formação e a saúde, onde, em situações de prestação de trabalho de curta duração existe a prática de contratar em aquisição de serviços.
Um bom exemplo do segundo cenário é o da leccionação, nalgumas escolas do ensino superior, de disciplinas de duração normalmente semestral em regime de curso intensivo. Num caso e noutro – duração normal ou curso intensivo – o carácter subordinado é o mesmo e o contrato deverá ser um contrato de trabalho.
Na Administração Pública, cumprir a lei
Como já alertei em artigo anterior o longo e conturbado processo relativo à aprovação e execução da Lei do PREVPAP só está a confirmar a incapacidade de o Estado fazer cumprir as suas próprias leis.[iv]
Quando acabarem os concursos previstos, bom será que se volte a aplicar a Lei do Trabalho em Funções Públicas, fazendo cessar todos os contratos de aquisição de serviços para exercício de funções subordinadas, que são nulos, sem prejuízo dos efeitos produzidos.
E devem ser suprimidos na Administração Pública todos os mecanismos que permitem a prestação de funções em regime de trabalho precário sem cobertura legal. Sem isso, que péssimo exemplo se estará a dar aos privados!
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