Viver não custa, custa é saber viver
por estatuadesal(Francisco Louçã, In Expresso, 17/03/2018)
A sina de Portugal são os ‘senhores milhão’ dos tempos idos do banqueiro Burnay até aos ‘engenheiros’ e mágicos financeiros da EDP ao Montepio.
Os dois casos empresariais da última semana, a EDP e o Montepio, são um retrato de Portugal. Andemos para trás um século ou até um século e meio e é a mesma história: grandes empresas que vivem à conta de favores ou de regras favoráveis.
O senhor milhão
A figura de Henry Burnay é um mito do empresariado português. Eça fez dele o banqueiro Cohen em “Os Maias” e fez servir ervilhas à Cohen num jantar de gala; Fialho de Almeida, mais prosaico, chamava-lhe o “pulgão polimórfico”, mas a imprensa ficava-se respeitosamente pelo “senhor milhão”.
Foi industrial e lançou empresas de lanifícios, de vidros, de transportes, fundou a Casa Havaneza, negócios coloniais e outros. Especulou e usou o poder de emissão monetária para pagar as suas próprias dívidas, fez trinta por uma linha. Presidiu a comemorações de Camões, foi benemérito do Jardim Zoológico, viveu principescamente num palácio na Junqueira e, quando morreu, deixou uma fortuna que o colocaria entre os dez homens mais ricos de Paris.
Ganhou quase sempre, mas foi como maior acionista do Banco Nacional Ultramarino que se estribou no poder. Ágil nos circuitos financeiros, Burnay foi o intermediário dos empréstimos internacionais que Fontes Pereira de Melo mobilizou para financiar a sua política e, quando do Ultimato inglês de 1891, foi Burnay quem salvou a situação, ao conseguir o apoio de um sindicato bancário estrangeiro e um acordo com Londres. Isso teve um preço: recebeu o contrato do monopólio dos tabacos, o mais apetitoso de todos os favores régios. Primeiro por 15 anos, depois estendido por mais 20, assim a Companhia de Tabacos Nacional fez o seu poder. Foi deputado por Pombal e depois Setúbal, foi conde, e que importava isso, tinha os tabacos. Em Portugal, foi sempre o Estado que fez os milhões dos milionários e nada mudou.
Os engenheiros de milhões
Foi a manchete deste caderno de Economia na semana passada e provocou surpresa: as contas da EDP, explicadas por Mexia em conferência de imprensa, revelam que paga 0,7% de imposto sobre os resultados consolidados do seu grupo, ou €10,3 milhões sobre ganhos de €1520 milhões. Em 2016 teria pago 6,6%, de modo que crê-se que os acionistas estejam contentes com as melhorias conseguidas pelos engenheiros financeiros e ‘senhores milhão’ que elegeram. Em particular para o Partido Comunista Chinês, dono do Estado que reforçou a sua participação na EDP e controla agora 28,25%, a notícia é a confirmação de que escolheu bem.
A EDP é dominante num dos oligopólios naturais em Portugal e tem uma capitalização bolsista de €10 mil milhões. Gere negócios em vários continentes. Estendeu-se a várias atividades, o que só ilustra o seu poder. Mas o que seria desse poder sem os favores? O favor da privatização, antes de todos; o favor fiscal, modesta compensação perpétua para os acionistas que decidiram ‘arriscar’ num negócio garantido. Teoricamente, uma empresa como a EDP pagaria em Portugal 29,5% de IRC, derrama e outras taxas. Mas o teoricamente é muito teórico: a empresa gaba-se de, no mundo inteiro, conseguir ficar pelos 0,7%, incluindo as operações não domiciliadas em Portugal. Explicam então as contas: €14 milhões são benefícios sobre os dividendos, há depois uma reavaliação de ativos (o que em 2017 deu €174 milhões, este ano são €240 milhões) e vamos chegando ao imposto efetivo. Há depois €591 milhões são de mais-valias não tributadas em Espanha (o Governo português apressou-se a esclarecer que se fosse cá também haveria isenção), mais alguns benefícios fiscais nos EUA e outras artimanhas, ficam todos a perder. É um golpe do baú em todo o lado onde são usados os labirintos dos benefícios fiscais. Incomodada com a manchete, a EDP veio garantir que em Portugal paga muito, lançando o número de €481 milhões. Muito milhão, dizem, aliás esquecendo a contribuição sobre as rendas que a EDP se recusa a pagar desde que o governo deixou de ser do PSD-CDS.
A média de IRC efetivamente pago em Portugal por empresas de resultados de mais de €250 milhões é 25,4%. Mas as taxas efetivas são em alguns casos mais baixas: a Semapa paga 7,1%, o BCP 9,5% e a EDP Renováveis 10%. Pobre Jerónimo Martins, declara pagar 26,9%, faltar-lhe-á um ‘senhor milhão’?
Os mágicos dos milhões
O segundo caso é o do Montepio, que descobriu o ovo de Colombo: se não tens lucros, inventa-os. Tendo um prejuízo de €251 milhões em 2017, o Montepio vai registar €808,6 milhões em créditos fiscais como ativos por impostos diferidos, passando a ter resultados positivos de €510 milhões. É lindo: o que correu mal foi a garantia de que as contas ficam confortáveis.
É legal, sim. O esquema foi inventado para safar as contas dos bancos italianos e depois magicamente estendido a outros países, parece que o BCE gostou da ideia. Mas tem duas condições: só entram nesta categoria os efeitos fiscais futuros dos prejuízos efetivos e contabilizados (que são crédito fiscal até 70% do seu valor e por 12 anos, norma PSD-CDS, ou por cinco no caso de grandes empresas, norma do Governo PS) e as diferenças temporárias atribuíveis a discrepância entre normas fiscais e contabilísticas, o que é um universo de penumbra. Ora, a empresa deve ter resultados nos anos seguintes para poder confirmar estes “ativos diferidos” nas operações subsequentes — ou perde tudo.
Para a combalida administração do Montepio, a notícia é sorridente. Acumulou entre 2012 e 2017 resultados negativos de €412,8 milhões na associação e de €862,4 milhões em todo o grupo e, em consequência, apresenta resultados positivos de €510 milhões. O problema é que os mutualistas pouco beneficiam desse maná e, pelo contrário, continuam com o risco do prejuízo real.
Que triste, a sina de Portugal são os ‘senhores milhão’.
As nossas regras são assim
Chamada de número não identificado) Está lá? É o senhor Francisco? Olá, como está? Eu sou José Nome, da MEO. Deixe-me fazer algumas perguntas, não lhe tiro mais do que um par de minutos. Só para confirmar, a sua morada, faz favor?
— ...
— O seu número de contribuinte?
— ...
— Pois, sr. Francisco, a MEO tem uma proposta para lhe fazer. Verificámos que o seu sistema é ADSL e, como já temos fibra ótica na zona da sua residência, podemos oferecer-lhe passar para a fibra sem qualquer custo.
— Boa ideia. Mas diga quais são as condições.
— É simples, agora paga tantos euros pela televisão, internet e telemóvel e tem tantos cartões, passaria a ter o custo, deixe cá ver... ora espere um pouco... de mais uns euros por mês.
— É aceitável. Mas como seria o novo contrato?
— Ora, é assim: passaria a ter uma velocidade de tantos nós, a capacidade de descarregar dados teria tantos quilómetros, cada telefone pode fazer chamadas até uma altura de tantos metros, e pode mandar mensagens sem limite depois paga tantas libras, mas se for MMS é diferente, é só até tantos quilos, e ainda isto e aquilo. E mais uns terabytes de isto e aquilo, e velocidade e coiso e tal. E mais uma lista de outros tantos itens (leitura longa de disposições várias). Claro que só exigimos que mantenha uma fidelização de dois anos com a nossa empresa.
— E pode mandar-me isso por e-mail, para ler as condições com atenção?
— Isso não posso.
— Não pode?
— Não, tem de aceitar primeiro.
— Tenho de aceitar as condições que me leu da sua cábula mas não as posso ler num e-mail?
— Pode ler, eu posso mandar o contrato, que aliás tem de assinar, mas só posso mandar se antes tiver aceitado as nossas condições.
— Então o que me está a dizer é que me manda o contrato com as condições, para que eu as leia, sabendo que ler ou não ler é indiferente porque tenho de assinar quer concorde quer não?
— Pois é, são as nossas regras. O contrato fica já feito e só mandamos por escrito desde que o tenha aprovado.
— Mas sabe que eu sou dos que acham que só posso aceitar desde que receba as condições escritas e as possa estudar? Acho até, imagine só, que um telefonema de uma pessoa que não conheço, de um número anónimo, não substitui um contrato assinado com pleno conhecimento das condições.
— Quer que eu lhe repita as condições devagarinho para tomar nota de tudo?
— Está a brincar comigo. Para a MEO o que vale como contrato é um telefonema anónimo em que se lê devagarinho as cláusulas que se recusa a entregar por escrito para consideração?
— Ó sr. Francisco, é isso mesmo, são as nossas regras.
(Creio que a legislação sobre práticas contratuais abusivas não prevê ou previne esta forma de imposição de contrato oral com pseudo-valor legal, utilizado para impressionar os consumidores. Esta imaginação merece Óscar.)
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