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sexta-feira, 27 de abril de 2018

A “folga”

Novo artigo em BLASFÉMIAS


por Sérgio Barreto Costa

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“Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo” é um verso famoso de Alexandre O’Neill, parte crucial de um poema em que se conjuga a biografia do país com a autobiografia do autor. Se Portugal fosse um poeta e quisesse imitar O´Neill, o verso decisivo não poderia ser outro que não “Folga: questão que eu tenho comigo mesmo”.

A “folga” é a palavra-fetiche da nação lusa. Se vamos ao mecânico, logo nos descobrem uma folga na direcção; se interrogados sobre prazos de entrega, há certamente uma folga na resposta que sairá da nossa boca; se pretendemos um novo serviço público, é uma questão de segundos até identificarmos uma folga orçamental que o possibilitará. A “folga” é a muleta de todos os pedidos, de todas as desculpas e de todas as opiniões. E é algo que desejamos mesmo quando nos encontramos envolvidos em tarefas agradáveis. Recordemos o Conjunto António Mafra e a música Domingo. O protagonista, radioso, anda perdido entre rabos-de-saia: namora com a Rosalina à segunda-feira, telefona à Miquelina na terça, encontra-se com a Manuela na quarta, sai com a Felisbela na quinta, telefona à Ivone na sexta, está com a Olga no sábado. No entanto, apesar de tão animada e prazenteira semana laboral, é com indisfarçável prazer que nos comunica que ao domingo está de folga. Só uma obsessão de grande envergadura pode justificar que o próprio folguedo seja preterido em benefício da folga.

Não espanta por isso que o debate político dos últimos tempos ande concentrado na “folga”. O Governo quer usar a “folga” orçamental para baixar o défice em mais umas décimas, o Bloco de Esquerda exige que a “folga” seja investida nos serviços públicos, Silva Peneda prefere aproveitar a “folga” para baixar a carga fiscal das empresas. Eu, assustado, corro ao oftalmologista para me aumentar a graduação. É que, por mais que me esforce, não vejo folga em lado nenhum: a dívida pública mantém-se assustadoramente alta e o Estado continua a viver em défice, gastando mais do que aquilo que consegue cobrar em impostos. É verdade que essa diferença entre receitas e despesas é menos má do que a previsão inicial, mas o saldo continua a ser negativo. E não estamos a falar de trocos.

Uma vez, no final de um exame que correu mal, disse aos meus pais que ia reprovar com 6 ou 7 valores, mas uns dias depois, surpreendentemente, apareceu na pauta que tinha reprovado com um 8! Estivesse já em vigor a definição contemporânea de “folga” e tinha-lhes pedido um presente que recompensasse o meu desempenho.

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