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domingo, 22 de abril de 2018

O Interrogatório de Sócrates no Ministério Público

Novo artigo em BLASFÉMIAS


por Cristina Miranda

Foi impossível ficar indiferente à Grande Reportagem da SIC sobre o Processo Marquês. Não há dúvida que é preciso muita coragem jornalística para trazer a público detalhes tão importantes sobre o maior caso de corrupção jamais visto em Portugal envolvendo um ex-primeiro ministro. Há quem diga que foi manobra encomendada dos advogados de Sócrates para "mostrar" que não há provas.  Aqui vai minha análise.

Se no primeiro episódio (veja aqui) ficamos com a sensação de que há um propósito para "ilibar" publicamente Sócrates alegando falta de provas de acusação, nos seguintes (veja aqui e também aqui) esse sentimento dissipa-se por completo. A trilogia da reportagem veio demonstrar que, sim, nos primeiros interrogatórios, Sócrates foi interpelado pelo MP sem lhe darem as fontes sobre as quais pesavam as tais acusações mas, mais adiante, à medida que avançavam nos interrogatórios, já o confrontavam com testemunhos que contrariavam afirmações dadas por ele. Foi o caso em que Sócrates, por exemplo,  totalmente irado dizia que não teve qualquer influência nos concursos públicos atribuídos ao grupo Lena e exigia provas, mas quando confrontado no interrogatório seguinte com testemunhos, engasgou-se e teve amnésias. Outra situação foi sobre a amizade que mantinha com Salgado ao qual respondeu peremptoriamente que sempre fora tratado por este por "Senhor Primeiro Ministro",  que tivera com ele apenas encontros institucionais e raros.  Mas numa escuta ouvimos Salgado dizer "Olá Zé tudo bem?" enquanto combinavam um jantar em casa do banqueiro. Ou ainda que não ordenou a compra de seus próprios livros a Santos Silva quando vemos o amigo a confessar o plano. Sem referir a famosa histeria à volta das férias  de luxo que dizia não se lembrar, todas pagas pelo amigo, afirmando que ele, o "teso provinciano que vivia dos empréstimos" deste, pagava todos os jantares (hilariante!). Tudo isto com os advogados passivamente a ouvir, cabisbaixos, os disparates mal criados de Sócrates dirigidos ao MP.

Ficou claríssimo que não se trata de perseguição política alguma. As contradições dos testemunhos com os depoimentos de Sócrates são mesmo muitas e as escutas são elucidativas.  Revelam,  que há um novelo de ocorrências que todos os arguidos tentaram branquear para não deixar pontas soltas. Mas deixaram. E é precisamente por essas pontas pequeninas, que o grande novelo se desenrolou.

Começando pela origem duvidosa do dinheiro entre Santos Silva e Sócrates,  NINGUÉM pede emprestado a amigos por códigos.  Transporta depois o dinheiro por correios humanos pagos a peso de ouro, ou põe  motorista a receber 80 000€ desse "empréstimo" por transferência, na conta deste,  para pagar suas despesas pessoais  a menos que esse dinheiro seja ilícito e não se queira deixar rastos. Também, NINGUÉM compra apartamento luxuoso em Paris e formaliza depois um contrato de arrendamento ao amigo,  em 2014,  por um período que já caducou, em 2013,  se não for com o propósito de enganar as autoridades fingindo ser arrendada. NENHUM amigo do mundo financia outro amigo que se diz provinciano sem dinheiro e  a viver da generosidade da mãe para:   viagens em executivo;  para 20 000€ em estadias; para viver no lugar mais luxuoso e caro de Paris;  para gastar uma média de 40 000€ por mês;  para dar guarida à ex-mulher e filho em Paris numa casa por 400€ a noite; para gastar fortunas com amigas; para decorar "seu próprio apartamento", sem limites de despesa, com tudo do mais caro e requintado que há, ao gosto do amigo, sem ser "tido nem achado" na execução das obras como se não fosse dono dele; para comprar casas para mãe do amigo; para comprar 170 000€ de exemplares de livros  do "amigo pobrezinho". E como se não bastasse,  ver ainda o amigo a pedir emprestado compulsivamente milhares de euros e não dizer um "não, não posso" uma única vez, continuando a  disponibilizar valores astronómicos sem garantias, sem papeis,  sem nada. NINGUÉM é tão generoso a menos claro que o dinheiro "emprestado"  não seja do tal amigo "porreiro e generoso".

Depois vem Vale do Lobo onde Sócrates afirma não conhecer ninguém, não saber de nada mas não consegue responder como aparece de novo seu amigo generoso a receber dinheiro deste empreendimento. Como não soube explicar a existência de pagamentos da Venezuela ao amigo, outra vez, que depois serviram para gastos pessoais de Sócrates. Como não conseguiu explicar como um provinciano com conta a zeros, sem qualquer rendimento, avança com proposta de compra de casa no Algarve por 900 000€ pondo seu amigo a gaguejar no inquérito do MP, quando confrontado. Como também não conseguiu explicar como o dinheiro transferido do saco azul do BES foi parar à conta do primo que depois o fez chegar ao "amigo generoso" que está em todas as negociatas (mas que coincidência!). Como resposta limitou-se a dizer: perguntem ao Santos Silva, perguntem ao meu primo, consciente que não tinha o seu nome nas contas, logo, não se importou de "entregar as cabeças destes dois numa bandeja" ao MP. Muito perverso e revelador.

Ficou claro com este interrogatório que o Processo Marquês é muito mais do que uma acusação a um ex-primeiro ministro. É todo o sistema político que está a ser julgado envolvendo ministros, banqueiros e empresários como nunca se viu em Portugal. Um polvo gigante ao estilo siciliano que parece não ter fim. Como diz Ana Gomes e bem, depois de ver Manuel Pinho juntar-se a Sócrates: PS não pode continuar a ser instrumento de corruptos e criminosos.

Se a divulgação dos interrogatórios foram legais ou não de pouco interessa. Não passa de uma desobediência nos termos do artº 88, nº2 do Código Processo Penal  que ao pé dos 31 crimes de Sócrates, 33 crimes de Santos Silva, 21 de Salgado (sem contar os restantes 25 arguidos) é uma insignificância que não vem alterar qualquer facto que nele vimos e ouvimos. E merece um aplauso aos jornalistas que puseram o interesse público acima dos interesses do sistema.

A Ordem dos Advogados manifestou seu repudio pelo sucedido alegando que a reportagem "instiga a tumulto social  ao revelar apenas partes de interrogatório e escutas acusando os jornalistas de parcialidade. Boa desculpa. Se fossem  EMITIDOS por completo já seria ético, é isso? (algum jornalista da SIC que pense nisso).  E pergunto: fazer vídeos no YouTube, conferências de imprensa, comentários televisivos sobre Processo Marquês, a revelar detalhes em investigação, ANTES do trânsito em julgado, por um arguido, que esteve 9 meses em preventiva, é legal? Não brinquem.

Do interrogatório, ficaram estas dúvidas: como pôde a CGD fazer um empréstimo de 145 000€ a alguém teso, sem rendimentos e sem garantias?  De onde tirou Santos Silva o dinheiro para "emprestar" ao amigo? Com que rendimentos o arguido Sócrates -  que vive actualmente com pensão de pouco mais de 3000€ -  paga 700 000€ aos advogados e vida pouco modesta que ainda faz? De onde vinham os "valores milionários emprestados" pela mãe de Sócrates sem fortuna conhecida? Porque Sócrates ordenou em escutas o pagamento de impostos atrasados, relativo a uma casa em Paris que "não era sua"? Se não há provas na condenação a Sócrates, porque seus advogados queriam inutilizar as escutas sob o pretexto ridículo de vírus?

Termino com um forte aplauso para Passos Coelho, o homem a quem devemos a queda do Império Salgado que deu origem ao Processo Marquês e levará este banqueiro e Sócrates e mais 26 arguidos, à barra do Tribunal. Outro aplauso sonoro ao Juiz Carlos Alexandre e sua equipa pelo grande trabalho de investigação que certamente ficará na História de Portugal. Parabéns à SIC pela excelente reportagem que nos leva a este submundo da corrupção inimaginável ao cidadão comum. Que a Justiça prossiga seu caminho tranquilamente sem obstruções.

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