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domingo, 22 de abril de 2018

Entrevista a Terry Virts, o astronauta que ouviu Deus enquanto sobrevoava Portugal

22 Abril 2018

Marta Leite Ferreira

É dos homens que mais tempo passou no espaço. Viu a guerra na Ucrânia começar ao lado de russos. Teve cancro e diz que se o soubesse iria na mesma. Porque acredita na ciência e acha que encontrou Deus

A viagem de Terry Virts para o espaço começou muito antes daquele em dia que se sentou a bordo da nave Endeavour para passar quinze dias à volta da Terra. Tudo começou quando tinha seis anos e lhe ofereceram um livro sobre a missão Apollo 11, que levou o Homem a pisar a Lua pela primeira vez, repleto de imagens e com apenas meia dúzia de frases sobre o assunto. Depois de o folhear, o pequeno Terry Virts tomou a decisão de ser piloto da Força Aérea e forrou o quarto com imagens de aviões e de foguetões que rasgava nas revistas. É nisso que pensava a 8 de fevereiro de 2014 quando vestiu pela primeira vez o fato de astronauta da NASA e rumou para a Estação Espacial Internacional. “Nisso e em manter-me vivo”, confessa ao Observador entre risos.

Foi o primeiro passo de uma grande aventura: Terry Virts tornou-se numa das pessoas que mais tempo seguido passou no espaço e comandou a Estação Espacial Internacional quando ela estava ocupada por cientistas dos Estados Unidos e da Rússia, duas nações que em Terra se confrontavam com guerras diplomáticas. Ao Observador, confessa ter sido doloroso ver os companheiros cosmonautas sofrer ao verem a Ucrânia ser bombardeada nos primeiros tempos da guerra civil. Ali em cima, no entanto, a prioridade não é a política: é sobreviver a destroços perdidos a velocidades alucinantes, a falsos alarmes que fazem temer pela vida e à radiação cósmica, que provocou a Terry Virts dois cancros, provavelmente por causa de alterações genéticas. Não guarda ressentimentos sobre os maus momentos nem voltaria atrás: para estar na Terra tem a vida toda, explica-nos.

Em Portugal para participar na Cimeira da National Geographic, é a primeira vez de Terry Virts em Portugal. Mas conhece bem o país lá de cima: é que foi ao sobrevoar Portugal que viu o primeiro nascer do sol a partir do espaço. Foi por cima de Portugal que encontrou um tom de azul que nunca tinha visto antes. E foi à conta dessa visão que confirmou aquilo em que sempre acreditou: ao contrário de Iuri Gagarin, Terry Virts diz que ouviu Deus enquanto apreciava a vista.

Esteve cerca de sete meses no espaço. O tempo custa a passar quando se está lá em cima?
É verdade, tenho a quarta missão consecutiva mais longa do mundo. Mas nem damos pelo tempo a passar porque acontece tudo a correr! Eu sei que alguns dos meus colegas ficam aborrecidos e conseguem até fazer uma contagem decrescente até à data de regressarem a Terra, mas para mim acontece tudo muito rapidamente. No meu caso isso foi ainda mais engraçado, porque a minha última missão foi aumentada por mais um mês por causa da explosão de um foguete que tivemos de investigar, por isso a NASA adiou a nossa substituição. A certa altura, nenhum de nós sabia quando é que voltaria para casa. Sentimo-nos verdadeiramente presos no espaço. E eu olhei para isso como uma mais valia. Pensei: “Esta é a minha oportunidade de estar no espaço. Vou passar o resto da minha vida na Terra, por isso mais vale apreciar o tempo que tenho de passar cá em cima.”

Passou boa parte do tempo a fotografar a Terra.
Sim, tirei literalmente milhares de fotografias ao planeta e depois reuni algumas delas no meu livro da National Geographic “View from Above: An Astronaut Looks at the World”, porque adoro essa arte. Adoro contar histórias com as câmaras e prova disso está no filme IMAX “A Beautiful Planet”, em que participei em 2016. Acho que em nenhum desses trabalhos dá para descrever a sensação de ver o planeta Terra com aquela perspetiva. É incrível, mas a não ser que se veja com os próprios olhos, claramente não tem o mesmo efeito. A primeira vez que vi a Terra à luz do dia foi quando fiz um passeio espacial para arranjar um braço enferrujado da Estação Espacial Internacional. Tínhamos acabado de sobrevoar o Oceano Atlântico e julgo mesmo que estávamos por cima de Portugal.

Quando me virei e vi aquele tom de azul, senti que ouvi alguma coisa vinda de Deus. Tive de regressar logo ao trabalho depois desse encontro. Mas encontrei ali a fronteira entre o que é mundano e o que é sublime. Encontrei respostas.

Como foi?
Sabe, quando os astronautas estão no espaço também estão sempre cheios de trabalho. Há mesmo muita coisa para fazer e até quando vamos para um passeio fora da Estação é para tratar de algum detalhe das máquinas que pode estar errado. Mas naquela vez decidi parar uns segundos e olhar para trás. E quando olhei para trás vi o nascer do sol: havia um azul ao longo de toda a atmosfera da Terra. Foi uma coisa tão intensa que lembro-me de pensar: “Nunca vi aquele tom de azul.” Fiquei chocado, até, porque depois de tirar tantas fotografias e de tanta preparação em casa pensava que já tinha visto todos os pormenores do planeta onde vivia. Eu sou cristão e essa experiência teve um impacto muito grande em mim.

Iuri Gagarin era religioso e disse não ter visto Deus.
Bem… Não sinto que mudei, mas penso que agora vejo o mundo de uma forma muito menos monocromática. Quando somos jovens achamos que temos as respostas para tudo e pensamos que sabemos definir completamente o que é certo e o que é errado. Agora, provavelmente, consigo compreender todos os tons que existem entre o branco e o preto que eu achava que a vida era. Descobri claro que a maldade e a crueldade vivem na Terra, mas também aprendi muito sobre a condição humana. Mas posso dizer que, quando me virei para trás e vi aquele tom de azul de que falávamos, sinto que ouvi alguma coisa vinda de Deus e vinda de cima. Tive de regressar logo ao trabalho depois desse encontro, porque havia realmente muita coisa para fazer. Mas encontrei ali a fronteira entre o que é mundano e o que é sublime. Encontrei respostas.

Teve de enfrentar riscos para obter essas respostas, não foi?
Há muitos riscos, é verdade. Logo à partida, há o risco de o foguetão onde viajamos explodir no percurso entre a pista de lançamento e o espaço. Depois, há destroços a flutuar pelo espaço que nos podem acertar. Isso chegou a acontecer comigo: durante a minha missão fomos atingidos três vezes em oito meses por destroços que provocaram buracos na Estação Espacial Internacional, mais ou menos como aconteceu no filme “Gravidade”. O maior risco de todos é a radiação. Na verdade, tive cancro depois da minha missão. Não sei se foi exatamente por causa da radiação, mas posso partir do princípio que sim: tive cancro duas vezes e surgiram sempre depois dos meus regressos a casa. Fiquei impressionado por a NASA nem sequer ter estudado isso.

Não foi acompanhado pela NASA quando soube que tinha cancro?
Nós fazemos muitos exames médicos e análises antes e depois das nossas missões espaciais, mas pensava que a NASA continuaria a estudar a nossa evolução para perceber esses efeitos mais a longo prazo, principalmente os provocados pela radiação cósmica, mas nunca o fizeram. Eles fizeram isso com o Scott Kelly, claro, naquele estudo de um ano para saber os efeitos de longas presenças no espaço, tanto na mente como no corpo dos astronautas. Aliás, ele esteve na Estação Espacial Internacional comigo enquanto participava nesse estudo. Mas a verdade é que, além desse estudo, a NASA não tem grande matéria sobre esses mesmos efeitos. Em quinze anos que trabalhei na agência espacial nunca fui examinado nesses campos. E eu não sabia disso! Os médicos disseram que era provavelmente do efeito da radiação cósmica no meu ADN. Mas mesmo que soubesse disto em antemão, isso mudaria nada. Iria ao espaço à mesma.

Porquê?
Eu não sou uma daquelas pessoas que decide correr riscos só para sentir a adrenalina circular mais no sangue. Não salto do topo de pontes nem faço aquelas loucuras de saltar de um avião com fatos a imitar asas. Mas é preciso ter em conta que sou um piloto da Força Aérea dos Estados Unidos da América. Sou um militar. E, como o militar que sou, estou disposto a correr riscos se valerem a pena. E acho que explorar o espaço vale a pena, que a ciência vale a pena. Quanto ao cancro, tive a sorte de não ter os “maus cancros”. E a verdade é que já desapareceram, por isso não guardo ressentimentos. Sei que outros astronautas morreram de cancro. Quer dizer, perdi amigos por causa dessa doença. Mas sim, acho que vale a pena ter cancro em prol da ciência. Se não pensasse isso não o teria feito. Nunca se vai fazer nada que valha a pena recordar, que vá marcar o mundo de alguma forma, se não se correr riscos. Vocês portugueses sabem disso melhor que ninguém: se não se tivessem metido em barcos e entrado pelo oceano de um mundo completamente desconhecido, a História não teria este rumo.

Tive cancro duas vezes depois da minha missão. Em 15 anos que trabalhei na agência espacial nunca fui examinado nesses campos. E eu não sabia disso! Os médicos disseram que era provavelmente do efeito da radiação cósmica no meu ADN.

Nesses sete meses que passou no espaço, sentiu que perdeu alguma coisa na Terra?
Sim. A parte mais difícil de cumprir das missões da NASA é provavelmente o facto de ter deixado dois filhos para trás, mas como já eram adolescentes acho que eles não sofreram tanto assim com o facto do pai não estar em casa [risos]! Todas as semanas podíamos fazer uma chamada de vídeo com a nossa família e era engraçado, porque ficávamos a olhar uns para os outros sem dizer nada, como se não houvesse tema de conversa, porque nos vemos todos os dias. Estou a brincar, claro: isso acontecia, mas foi muito difícil. O que mais me custava era não ter aquele papel de os ajudar com os trabalhos de casa quando eram difíceis. Ou seja, participar nesses momentos tão simples da vida familiar.

Quais foram os momentos mais tensos que viveu no espaço?
A resposta a essa pergunta é a maior história que guardo da minha missão espacial. Eu comandei a Estação Espacial Internacional e dividi-a com uma tripulação que tinha norte-americanos, russos e italianos. E é também a história de que mais me orgulho, porque geri uma equipa de astronautas e cosmonautas nos momentos em que as tensões entre os Estados Unidos e a Rússia aumentaram. Ali estávamos nós no espaço. Fiz um esforço para saber falar russo, para passar tempo com eles e para jantar quase sempre com a equipa reunida no lado russo da estação. Consegui a paz que pretendia lá dentro, tanto que ainda hoje continuamos amigos: estamos constantemente nas mensagens ou a enviar e-mails uns aos outros ou a falar ao telefone. Portanto, os problemas políticos nunca foram uma pedra no nosso caminho. Decidimos que a política era a política, mas que o mais importante mesmo era que nós ali em cima soubéssemos proteger-nos uns aos outros e continuarmos vivos. No espaço as coisas relativizam-se um pouco: quem quer saber do que as pessoas na Terra estão a fazer? Somos seres humanos, por isso mais vale trabalharmos todos juntos.

Mas como é gerir o ambiente quando as preocupações se adensam?
O momento em que senti mais dificuldade em fazê-lo foi quando a guerra civil no leste da Ucrânia começou. Era de noite e nós estávamos todos reunidos no segmento russo da Estação Espacial Internacional. Decidimos todos ir para a gigantesca câmara com janelas que permitem ter uma vista panorâmica para a Terra, que eu tinha instalado uns tempos antes. Estávamos a sobrevoar a Ucrânia quando começámos a ver clarões vermelhos mesmo por cima do país. Foi estranho pensar que, se estivéssemos ali em baixo, provavelmente estaríamos a matar-nos uns aos outros naquele preciso momento. Foi triste. Quando se está com um russo é muito, mesmo muito provável que ele tenha família na Ucrânia. Nas chamadas para a família ouvia-os a perguntar com muita ansiedade se estava toda a gente bem. É angustiante. Mas a Estação Espacial Internacional é um grande exemplo de como devíamos agir uns com os outros. Exemplos de como não agir há muitos. Mas a história humana dentro da estação é o exemplo que deve ser seguido. Além claro, da história científica.

Estávamos a sobrevoar a Ucrânia quando começámos a ver clarões vermelhos mesmo por cima do país. Foi estranho pensar que, se estivéssemos ali em baixo, provavelmente estaríamos a matar-nos uns aos outros naquele preciso momento. Foi triste.

De que modo é que americanos e russos têm formas diferentes de investir na exploração espacial?
Repare nisto: nos anos sessenta os norte-americanos construíram a “Fisher Space Pen”, uma caneta pressurizada que consegue manter o contacto com o papel para que se possa escrever no espaço, uma vez que não há gravidade. Os russos não: eles simplesmente usavam um lápis de carvão. Isso diz tudo sobre a abordagem russa da exploração espacial: no segmento deles têm tudo o que nós temos, mas com mecanismos muito mais simples. Nós temos sistemas de bombeamento de água eletrónicos cheios de sensores e filtros para controlarem temperaturas, enquanto eles usam simplesmente válvulas para puxar a água. São muito práticos. E funciona! Os americanos são mais complicados: as nossas máquinas fazem muito mais e conseguem muito mais coisas, mas também são muito mais sensíveis e caras.

A nave Soyuz exemplifica essa simplicidade.
É verdade. A nave tem três partes e quando se regressa a Terra nela há uma separação: os tripulantes ficam no meio, então essa parte entra para o planeta, enquanto as outras duas partes são desprezadas e acabam por queimar na reentrada. Há uma década, no entanto, isso não aconteceu: a Soyuz veio toda por completo para dentro da Terra e ainda por cima ao contrário. Isso poderia ter sido muito grave, porque os escudos que protegem a nave do calor da reentrada na atmosfera vinham virados para cima. A sorte foi que as duas partes mais sensíveis derreteram e degradaram-se, mas a parte do meio onde iam os cosmonautas regressou intacta e toda a gente ficou sã e salva. Isso é um grande exemplo da Rússia a simplificar tudo: fez da Soyuz um simples pedaço de metal gigante. Tão simples que se pode entrar naquela nave, fazer com que tudo corra mal e ainda assim sobreviver à reentrada na Terra. Os americanos não teriam a mesma sorte dentro do Space Shuttle.

Nos anos 60 os americanos construíram a "Fisher Space Pen", uma caneta que consegue manter o contacto com o papel para escrever onde não há gravidade. Os russos simplesmente usavam um lápis de carvão. Isso diz tudo sobre a abordagem russa da exploração espacial.

E o futuro da exploração espacial: depende mais das agências espaciais ou das companhias privadas?
Viu o lançamento do foguetão Falcon Heavy da SpaceX, quando os dois Falcon 9 ao lado da nave regressaram e tudo? Esse foi o momento de revelação para mim: o futuro da exploração espacial depende claramente de companhias privadas como a do Elon Musk ou como a Blue Origin e outras que tais. São eles que têm tudo na mão. As agências governamentais como a NASA estão a fazer coisas incríveis, mas continuam a ter de seguir muita burocracia. E sim, concordo com o Elon Musk quando diz que as viagens espaciais comerciais podem ser uma realidade. Não só penso que podem ser uma realidade, como penso que devem ser! E isso deve acontecer muito brevemente. Nem toda a gente tem 10 milhões de dólares para gastar, mas penso que esses valores absurdos vão baixar para as centenas de milhar e estar ao alcance de mais gente um dia.

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