Opinião
Hoje às 00:03
- A exposição da debilidade humana é uma revelação de falência da sociedade democrática. Quando sujeito à pressão e ao escrutínio dos interrogatórios da Operação Marquês, José Sócrates comporta-se como qualquer acossado. Gesticula, verborreia, atira-se às grades com distinção animal, defende e ataca, dissimula e voa entre figuras de estilo e acto dramático. Nada de provinciano transmontano assoma ou de fausto parisiense brilha. Não há qualquer justificação ou interesse público em ver um animal político dar luta senão para edificar a convicção no julgamento público da sua culpa. Sabe-se agora que ninguém está a salvo de ver a sua liberdade devassada com videoinquéritos judiciais sem consentimento informado. Não há razão plausível que me convença de que quem defende esta invasão da justiça pelo dente-por-dente não se mova, sobretudo, pela sede canina de soltar o seu olho-por-olho em rasgo individual de carrasco.
Com a devida vénia em dia de Liberdade, nem a minha nem a convicção de ninguém sobre a culpa ou a inocência de José Sócrates são para aqui chamadas. Sorridentes, continuam a desfilar os alumiados que mancham todos aqueles que defendem os mais elementares princípios de direito, associando-os à torpe tentativa de justificar ou absolver Sócrates. Esse processo de linchamento do Estado de direito pela sede de ir ao pote dos ódios particulares é uma perigosa travessia para o tempo dos algozes. Ao longo dos dias, analistas políticos transformaram-se em especialistas comportamentais através de câmaras de vigilância. Salivam por frame. Asseguraram o interesse público na divulgação de imagens de um processo judicial em curso, estimulados pelas expressões faciais subliminares, manifestações corporais com peso específico, pelos silêncios e escusas de labirinto, pelo timbre de voz da fera ou pelo seu esmagador silêncio, pelos segundos de aceleração aos 100. Não há nada de novo, não há investigação. Há voyeurismo judicial. A felicidade do torcionário está estampada. O julgamento pela convicção está na cara.
É assustadora a facilidade com que hoje se reescreve o "Tratado antropológico experimental do homem delinquente". No século XIX, a teoria do criminoso nato de Cesare Lombroso fazia escola na antropologia criminal, inebriada pela selecção natural de Darwin. Bastava, então, a análise das características puramente físicas e comportamentais para se apontar ao criminoso, condenado que estava à reincidência pelo peso da hereditariedade e pela irrenunciável vertigem da delinquência. Epicteto, filósofo grego, assegurava que "não são as coisas que nos perturbam mas a forma como interpretamos o seu significado". Se a justiça passar a conviver bem com um kit de justiceiros, convirá tipificar criminalmente o ódio como a verdadeira doença.
O autor escreve segundo a antiga ortografia.
MÚSICO E JURISTA
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