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quarta-feira, 9 de maio de 2018

COMO SER PRESIDENTE DA REPÚBLICA: DICAS DE AUTO-AJUDA

por estatuadesal

(José Gabriel, 08/05/2018)

Discurso seletivoImagem obtida no Blog 77 Colinas

Vossemecê tem 35 anos? Então pode ser presidente da República. Esteja à vontade para se candidatar, mas não tome as coisas de ânimo leve. Também não precisa de procurar um personal coaching. Algumas dicas simples bastam. Ora vamos lá, da mais básica à mais retorcida:
1 – Repita teses, proclamações e propostas consensuais – aliás, deve usar e abusar do termo “consensual” e derivados – do tipo “urge garantir o crescimento do país”; “promover uma justiça mais rápida e para todos”; “melhorar a eficiência do Serviço Nacional de Saúde”; “promover o emprego – e a habitação, direitos e tudo o mais – e combater as desigualdades”. Está a ver o género. Claro que não faltará quem queira esmiuçar o que se esconde por trás destas frases, mas o presidente não se ocupa de minudências.
2 – Não poupe nos afectos, sobretudo se isso lhe trouxer vantagem – o que nem sempre é o caso, por isso, há conjunturas em que é melhor ficar na toquinha de Belém. Pratique imoderadamente a consigna “vamos ver o povo, ai que lindo que ele é”. Neste capítulo pode incluir-se o aproveitamento do sucesso e mérito alheios, cujos protagonistas – artistas, atletas, cientistas, filantropos e, de um modo geral, todos os que sejam geralmente reconhecidos como populares ou popularizáveis – devem ser condecorados, abraçados, beijados, apaparicados. É preciso não esquecer uma possível recandidatura, em que algumas destas figuras poderão ser muito úteis, designadamente numa decorativa e ilustre comissão de honra. É importante, neste domínio, não ser demasiado esquisito. Pode ter de ranger os dentes e arriscar um ataque de icterícia perante um compatriota que ganhou o Nobel, mas tem de fazer cara alegre e figurar na foto de conjunto, sob pena de ficar irremediavelmente estigmatizado como um idiota iletrado – atenção: isto já aconteceu.

3 – Desempenhe o papel de homem sem sono e frenético multitarefas, mesmo que isso seja, como geralmente é, uma patranha. Esta cena deve ser apoiada por numerosos assessores, aos quais não deve faltar o ar cansado de quem mergulha com zelo nos problemas do país. Custa caro? Custa. A casa da presidência portuguesa é uma das mais dispendiosas do mundo, só ultrapassada, na Europa, pela casa real inglesa. Mas é – todos o sublinharão – para o bem da Nação.

4 – A sua relação fundamental é com o governo, seja qual for a distância política a que dele está. Lembre-se (mas nunca o diga em voz alta): é o seu interesse que está em causa, não o país, o povo, o partido. Isto é cinismo? Claro que é. Mas está interessado em fazer dois mandatos ou não? Claro que está. Por isso:
4.1 – Recorra, sempre que possível, à técnica que designaríamos como “se correr bem o mérito é meu, se correr mal a culpa é do governo; eu avisei”. Este efeito obtém-se fazendo sucessivas advertências ao governo sobre as excelências a que deve chegar. Se as coisas correrem bem, aproprie-se sem vergonha da ideia, mesmo que ela seja velha como a noite, e do mérito, mesmo que nada tenha a ver com ele. Se correrem mal, demarque-se – “eu expliquei, dirá, mas o governo não foi capaz”. Note que, fazendo variar em grau este recurso, ele serve para os casos de o governo ser do(s) seu(s) partido ou do(s) opostos. Neste processo não deixará de exceder as suas competências; não se preocupe, a maioria dos eleitores nunca leu a Constituição.
4.2 - A técnica descrita anteriormente pode revestir o modo “vitimização com ameaça de martírio”, podendo assumir as variantes “o menino quer, buuáááá´” (“o governo tem de fazer como eu quero, senão fico contrariado”) ou “se não me derem o brinquedo, não como a papa” (“se não for como eu quero, não me recandidato”). Esta última forma é um pouco mais arriscada, porque o pagode pode encolher os ombros e marimbar-se na coisa, o que é perigoso. É chantagem, sim, mas pode não valer muito como ameaça, mesmo que a sua popularidade esteja no céu. Outras modalidades de comportamento passivo-agressivo podem ser usadas com muito proveito.
4.3 - Finalmente, a bomba! Já outros a usaram – com assinalado cinismo, diga-se, e com pouca consideração pelas populações. Note que não tem de usá-la – pode ficar chamuscado. Mas tem de saber manejá-la como ameaça. Exemplo: “se não aprovarem o Orçamento, convocarei eleições antecipadas” – note que não se diz “dissolvo a Assembleia da República”, o que, por ser a verdade, seria mais dramático e agressivo. Sendo um presidente “fofo”, só fala em eleições de modo um tanto impressionista, até porque sabe que o(s) seu(s) partidos não estão prontos.

(Nota final: estas regras servem uma candidatura à presidência de um país como Portugal. Países há que podem, por razões – há razões? – mui desvairadas, eleger qualquer imbecil tresloucado.)

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