(Francisco Louçã, In Expresso, 26/05/2018)
Poucos meses antes das eleições intercalares nos EUA, Trump precisa de um sentimento de guerra permanente, o que também é uma arma contra a Europa
Pela primeira vez desde 2001, no primeiro trimestre de 2018 a conta corrente da China está em défice. Em 2007, logo antes da crise financeira internacional, a China tinha um superavit de 10%; durante as últimas duas décadas, os seus produtos industriais baratos ajudaram a proteger o consumo nas economias mais desenvolvidas e impulsionaram o crescimento da economia mundial (e chinesa). Trata-se de uma situação excecional, em grande medida provocada por uma balança negativa de serviços (pelo aumento do turismo chinês), dado que a China continua a exportar mais mercadorias do que importa. Entretanto, a redução da poupança interna indica como a sua vida social se está a modificar. Xi Jinping está a proteger-se das tensões dentro de portas.
Este não é o único sinal de arrefecimento da economia mundial, que aliás só recuperou lentamente e de forma desigual desde a crise de 2007 e que, no caso da Europa, se prolongou durante oito anos. A China pode vir a crescer só 1% este ano, na Europa prevê-se 1,6%, no Japão antecipa-se nova recessão e nos Estados Unidos, de recuperação mais pujante, a projeção é 2,3%. Sempre menos do que se esperava há meses. São nuvens carregadas no horizonte. Só que nenhuma é mais ameaçadora do que Trump.
Armas apontadas para o Irão...
Macron e Merkel sucederam-se em visitas à Casa Branca, um sedutor e outra oficialista, ambos com igual insucesso. Não conseguiram nada e é mesmo duvidoso que esperassem algum sucesso: ao chegarem a Washington, sabiam que não demoveriam Trump da rutura do acordo com o Irão.
A Administração norte-americana joga no curto prazo: o conflito com o Irão tem vantagens económicas (os EUA são exportadores de petróleo e beneficiam do aumento do preço, pelas receitas e pela viabilização da exploração mais cara do fracking) e tem vantagens políticas (reforça a aliança com Israel e a Arábia Saudita contra o Irão). E tem ainda a vantagem da desvantagem da Europa, importadora de petróleo.
Por isso, a desvinculação do acordo com o Irão coincide com a abertura apressada da embaixada em Jerusalém. Poucos meses antes das eleições intercalares nos EUA, Trump precisa de um sentimento de guerra permanente e foi o que conseguiu. Ora, essa guerra é também uma arma para pressionar a Europa.
... e um míssil contra a Europa
Bolton, o conselheiro de segurança que Trump foi repescar do tempo da invasão do Iraque, já explicitou a ameaça: quem mantiver negócios com o Irão será sancionado. Para algumas grandes empresas, isso é fatal. A Airbus tem em curso a venda de cem aviões comerciais a Teerão e a Total, em parceria com a PetroChina, assinou um grande contrato para a exploração de gás natural. Sofrerão um rombo nas suas contas se abdicarem destes negócios.
Mas irão Macron e Merkel alinhar com a China e a Rússia para manter vivo o acordo com o Irão, que depende de canais de financiamento e de exportações? Para já, fingem que procuram uma solução. Ora, essa alternativa não existe e Macron já o insinuou numa conferência de imprensa, explicando que entende que as empresas francesas se retirem do Irão. A União Europeia (UE) poderia criar legislação para bloquear medidas de sanção contra empresas, ou até retaliar, mas não o fará: como lembra o “Economist”, o total das exportações alemãs para o Irão não ultrapassa as que dirige só para a Carolina do Norte e a UE não pode perder o acesso ao mercado norte-americano.
O meu botão é maior do que o teu
Neste processo, Trump descobriu que o seu maior poder não é só a ameaça política, nem sequer a militar e que o que os aliados e as empresas europeias mais receiam é o fecho do acesso ao sistema financeiro norte-americano. Esse é aliás o problema do Irão, que recuperou em 2016 o acesso ao SWIFT, o sistema de pagamentos bancários internacionais. Vai perdê-lo agora.
O verdadeiro poder está neste botão. Os dois sistemas de pagamentos norte-americanos transacionaram 4,7 biliões de dólares por dia em 2017 e Hong Kong, uma das principais praças asiáticas e a porta da China, só movimentou 0,8% desse valor.
A banca norte-americana é ainda o centro do sistema de pagamentos mundiais, não só porque o dólar é a principal forma de liquidez, mas porque controla os movimentos de capitais. Sem acesso a este sistema de pagamentos, as grandes empresas ficam congeladas. Ou seja, Trump pode fazer fechar qualquer grande empresa mundial. É assim que ele pensa, não como dirigente político, mas como destruidor da concorrência. A América Inc. vem sempre primeiro. O caos é um esplêndido negócio e Wall Street está radiante.
Dream team
As eleições europeias do verão de 2019 estão a tornar-se omnipresentes na conversa política, não tanto porque algum dos protagonistas tenha a menor ideia do que venha a ser o contexto europeu desse tempo tão próximo e tão nebuloso, mas antes porque as candidaturas estão em modo de frenesim. São os lugares que chamam pelos candidatos. Nuno Melo foi o primeiro, pelo CDS, agora separado do seu parceiro da anterior candidatura, Paulo Rangel, que também quer estar presente, à frente do PSD. No PS, Francisco Assis, que encabeçou a lista anterior, cometeu o erro de sugerir que ficaria de fora e agora desdobra-se em cada entrevista a explicar que afinal quer continuar, desde que o programa do partido não ofenda os seus pergaminhos e o lugar continue à disposição.
Seria um dream team para a esquerda. É difícil imaginar uma composição eleitoral mais vantajosa para os partidos que criticam o continuismo europeu e a modorra que vai conduzindo à triste desagregação institucional a que vamos assistindo. Ter de novo a parelha que conduziu o PSD-CDS à derrota nas anteriores eleições europeias, mas agora a explicar porque se separaram em duas listas opostas, é mais do que uma bênção. Repetir Assis à frente da lista do PS, para pedir votos para se opor a Costa, seria um milagre para quem se quisesse dirigir aos eleitores do centro para demonstrar que há falsa fé nesse arranjo europeu. É aliás tudo altamente implausível, mas que seria divertido, isso ninguém pode negar.
O acordar da tribo mais poderosa
John Adams foi um dos fundadores da república independente dos Estados Unidos e foi o seu segundo Presidente (1797-1801). Iluminista, acreditava e pregava que o “consentimento do povo”, e não o poder monárquico de uma família ou atribuído por uma divindade imaginária, era “o único fundamento moral do Governo”. Mas, quanto à definição do povo capaz de gerar tal consentimento, isso era para Adams uma questão mais controversa do que as boas intenções pareciam sugerir. Assim, quando Abigail, a sua mulher, sugeriu que a noção de povo deveria incluir a família e impor a igualdade entre os géneros, Adams mostrou-se surpreendido.
“A propósito, nos novos códigos de leis que suponho que venha a ser necessário escrever, deve lembrar-se das senhoras e ser mais generoso e favorável para com elas do que os seus ancestrais”, escreveu-lhe ela. E acrescentou: “Não coloque todo o poder nas mãos dos maridos. Lembre-se de que todos os homens serão tiranos sempre que puderem”. Adams respondeu-lhe com uma combinação ardilosa de receio social e de prosa cínica: “Tem-nos sido dito que a nossa luta enfraqueceu os diques da autoridade por todo o lado; que as crianças e os aprendizes estão desobedientes; que as escolas e os colégios se tornam turbulentos; que os índios chacinam os seus guardas e que os negros se tornam insolentes para os seus donos. Mas a sua carta foi a primeira intimação de que outra tribo, mais numerosa e poderosa do que todas as outras, está a ficar descontente”.
Temeroso de que a democracia se transformasse no “despotismo da plebe”, Adams preferia uma democracia censitária, preservando o poder social discriminatório. Assim foi uma das primeiras reivindicações modernas da democracia sem igualdade e com liberdade restrita. Numa carta a James Sullivan, um juiz que viria a ser governador de Massachusetts, Adams explicou-se com o medo de que a revolução “confunda e destrua todas as distinções”, criando tal insubordinação social que a ordem tradicional fique fragilizada e “não haverá fim para isto”. Assim sendo, a sociedade deveria manter o poder patriarcal na família, de modo que cada pessoa “saiba o seu lugar e seja obrigado a mantê-lo”. Não é de hoje a ideia de que a estabilidade da sociedade depende da submissão da “tribo mais numerosa”, as mulheres. Onde é que já ouviu isto?
Sem comentários:
Enviar um comentário