Pedro Nuno Santos, o líder informal da ala esquerda do PS, subiu ao placo do congresso para, em nove frases, explicar o que é "ser socialista". Citou Marx, elogiou Costa e acabou debaixo de aplausos.
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
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Sem medo de “rótulos”, invocando os “trabalhadores” e o “povo”, argumentando que as maiores conquistas foram conseguidas à esquerda e “contra a direita”. Pedro Nuno Santos discursou durante quase oito minutos no Congresso do PS e disse aos “camaradas” — sobretudo àqueles, como Augusto Santos Silva, que vêm defendendo que a virtude está no centro — que ser do PS significa ser de esquerda. “Isto não é populismo, isto não é radicalismo, isto é ser socialista” é, até ao momento, a frase do congresso. Mas houve outros momentos.
O debate e os “rótulos”
Partido Socialista de esquerda moderada e europeísta. O que é que isso quer dizer? O debate sobre os rótulos, sobre as categorias mais à esquerda, mais ao centro, mais moderado ou radical, europeísta ou não europeísta, esse debate não interessa aos portugueses. Não são categorias mais ou menos vazias que definem o que quer que seja.”
Foi o debate ideológico do pré-congresso, que se esperava que fosse também o debate ideológico do congresso — mas que na verdade só ganhou gás com a intervenção de Pedro Nuno Santos: o PS é um partido de esquerda, que deve manter a aliança com o PCP e o BE; ou é um partido de centro, ainda que centro-esquerda, que deve agir como um peão, no meio, a mover-se à vez para cada lado? António Costa quis arrumar logo essa questão ideológica no discurso de abertura que fez na noite de sexta-feira, dizendo que o PS “está onde sempre esteve” — uma frase que foi sendo depois repetida várias vezes, ora por Carlos César, ora por Santos Silva, ora por Ferro Rodrigues — mas que Pedro Nuno Santos quis alimentar. Não são os rótulos que interessam, disse, mas a discussão que está inerente a eles interessa. E foi sobre essa discussão ideológica que Pedro Nuno, o rosto da ala esquerda socialista, centrou toda a sua intervenção.
A identidade do PS. Quem somos? E quem representamos?
Nenhum programa pode ser feito se não soubermos quem somos. Quem representamos. E que papel atribuímos ao Estado. Quem somos? O PSD e o CDS têm uma perspetiva individualista da sociedade: cada um entregue a si próprio. Para nós, a comunidade é uma ideia forte, os problemas dos outros são os problemas de todos nós. E a solução para esses problemas é encontrada coletivamente. (…) Os partidos socialistas e sociais-democratas não foram criados para representar a elite. Foram criados para representar a grande maioria do povo português.”
Os rótulos não interessam, mas o que está por detrás da formação desses rótulos, sim. Pedro Nuno Santos fez a defesa da identidade socialista por contraste com aquilo que diz ser a identidade do PSD e do CDS. Na ótica do pedronunismo, enquanto os social-democratas e os centristas defendem uma perspetiva individualista da sociedade, com menos peso do Estado, o PS procura soluções em conjunto e pensa os problemas dos outros como seus. Partindo das perguntas “quem somos”, “quem representamos”, para onde vamos, e “qual o papel do Estado”, Pedro Nuno Santos defende que os partidos socialistas foram criados para representar “a grande maioria do povo português”, dos desempregados aos trabalhadores industriais ou agrícolas, dos serviços à classe média qualificada. Ou seja, a base de apoio do PS é o “povo”, no geral, ou o chamado “povo de esquerda”. A ideia que está subjacente a toda a sua intervenção é a de que o caminho que o PS deve seguir não pode ser nunca o do chamado “centrão”, com alianças à direita.
A máxima de Karl Marx
‘De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades’. Esta é uma máxima que parece abstrata, e que atravessa o movimento socialista e social-democrata há muitos, muitos anos. Mas a verdade é que é uma máxima que tem tradução concreta numa das maiores realizações da democracia: o Estado social.”
Esta é talvez a parte mais relevante para perceber o que é o pedronunismo, porque é a que mais o define enquanto ala esquerda do PS. Ao citar a máxima de Karl Marx, que, na sua opinião, se traduz na concretização do Estado social, Pedro Nuno diz estar a defender os valores da esquerda, muitas vezes encarados como “meramente utópicos”. Foi precisamente contra esses valores “utópicos” que Costa se manifestou na sua intervenção de abertura do Congresso. Disse Costa: “O partido que Mário Soares nos legou não é só um partido de valores, é um partido que nunca se esgotou na retórica dos valores, que nunca se conformou que esses valores sejam uma mera utopia para amanhãs que cantam. O nosso partido é um partido que sempre quis fazer”. E o mesmo disse Fernando Medina este sábado, ele que também se posiciona na fila da frente para o pós-Costa: “Somos um partido de Governo, não da proclamação retórica e vazia. Somos um partido que tem de saber onde se mexe, em que contexto atua, que alianças deve fazer”.
As vantagens de uma aliança à esquerda (parte 1)
Serviço Nacional de Saúde: uma da maiores vitórias do socialismo democrático português, de António Arnaut, do PS e dos portugueses. Mas que ninguém se engane, esta vitória foi feita contra o PSD e o CDS. Não foi com eles, foi apesar deles. Foi com o partidos à esquerda na altura. Foi uma vitória contra a direita portuguesa, não com a direita portuguesa.”
Pedro Nuno Santos não tem dúvidas de que o caminho do PS é à esquerda. Para justificar isso deu vários exemplos de conquistas que o PS teve no passado, e no presente, e que só as conseguiu graças ao apoio dos partidos à sua esquerda. O primeiro exemplo é o Serviço Nacional de Saúde, já que, à época, PSD e CDS votaram contra, e o PS socorreu-se dos partidos da esquerda para fazer aprovar o projeto de António Arnaut.
O aviso: se o PS sair do caminho da esquerda, desaparece
Um partido como o nosso, se não quiser ter o destino dos partidos irmãos no resto da Europa, não se pode esquecer nunca de quem esteve na origem da criação destes partidos. São centenas de milhares, talvez milhões, de trabalhadores portugueses que trabalham 40 ou mais horas por semana e que ganham mal, ganham pouco. O PS só pode, só merece, só manterá uma maioria no país se não deixar de falar para este povo, que é o povo que esteve sempre na origem dos partidos como o nosso.”
Lá está a ideia do “povo de esquerda” como base de apoio do PS. Depois de Augusto Santos Silva ter respondido a Pedro Nuno Santos quando subiu ao palco, aqui foi a vez de Pedro Nuno responder a Santos Silva que, em entrevista ao Expresso, defendeu que o “povo de esquerda” não cabia no PS. Para Pedro Nuno, é precisamente esse povo “que trabalha 40 horas por semana e ganha mal” que o PS tem de defender e apoiar — sob pena de acontecer ao PS português o mesmo que está a acontecer a todos os outros PS europeus: o desaparecimento.
O combate ao liberalismo de mercado
A direita ganhou quando conseguiu também colonizar cá dentro uma determinada ideia do Estado: o Estado como uma coisa má, um empecilho às liberdades, por contraposição a um mercado que floresce as liberdades. É exatamente ao contrário. O mercado produz vencedores e derrotados e é precisamente o Estado o instrumento colectivo para garantir a liberdade. Sim, a liberdade. A liberdade de todos e não de alguns.
Pedro Nuno Santos tentava exorcizar os fantasmas que ainda habitam o Largo do Rato desde os tempos socráticos. Esses fantasmas explicam-se assim: a crise que se abateu sobre o país atirou os socialistas para a travessia do deserto, trouxe a troika e Pedro Passos Coelho, levou à necessidade de inverter a política expansionista de José Sócrates, e ainda deu origem a António José Seguro e a um PS voltado ao centro, disposto a reduzir o peso do Estado e a liberalizar a economia — a tal colonização made in direita denunciada por Pedro Nuno Santos. O socialista encostou assim o partido definitivamente à esquerda: só um mercado devidamente regulado, só um Estado realmente forte, pode proteger os mais fracos.
As vantagens de uma aliança à esquerda (parte 2)
Proteção laboral. A legislação laboral garante a liberdade a um trabalhador na relação com o seu patrão, para que não fique à mercê da discricionariedade do seu empregador. É de liberdade que falamos quando falamos de legislação laboral. Não contamos com o PSD e com o CDS para proteger os trabalhadores. No seu discurso há uma obsessão com a liberalização da legislação laboral. Não é com eles que garantiremos liberdade a quem trabalha.
A reversão das reformas laborais introduzidas por Pedro Passos Coelho tem sido um dos pontos que maior fricção tem causado na “geringonça”. E, apesar de alguns ganhos de causa, Bloco de Esquerda e PCP nunca esconderam a frustração perante a resistência de Costa em mexer no Código do Trabalho. PSD e CDS, por sua vez, vão continuando a exigir uma maior flexibilização laboral, denunciando as tentações do PS de guinar à esquerda. Neste discurso, Pedro Nuno Santos escolheu claramente o seu lado da barricada: é à esquerda, com bloquistas e comunistas, que o caminho se faz; não à direita, não com menor proteção no emprego, não com maior flexibilidade.
As vantagens de uma aliança à esquerda (parte 3)
[Queremos] liberdade para quem trabalhou uma vida inteira e merece uma reforma com dignidade e decência. Uma reforma que não dependa da caridade de terceiros ou da estabilidade de mercados financeiros. Os nossos reformados só têm essa liberdade com um sistema público de pensões. E não é com o PSD ou com o CDS que vamos proteger o sistema público de pensões. O mesmo com a Educação, o mesmo com a Saúde. Caros e caras camaradas, isto não é populismo, isto não é radicalismo, isto é ser socialista!”
Foi “a” frase de Pedro Nuno Santos: procurar à esquerda a proteção do Estado Social “não é radicalismo”; é o único caminho possível, é o verdadeiro significado de “ser socialista”. Era a resposta para todos aqueles que, no partido e fora dele, defendem que é possível (ou que só é possível) garantir a sobrevivência da Segurança Social, da escola pública ou do Serviço Nacional da Saúde com reformas desenhadas ao centro, presumivelmente com o PSD. Não, diz Pedro Nuno Santos: o Estado Social só é reformável à esquerda.
Orgulhosamente socialista
Depois destes dois anos e meio liderados por António Costa, podemos todos sair lá fora e com orgulho dizer ‘Sim, eu sou socialista’.”
Pedro Nuno Santos passou quase oito minutos a explicar o que significa ser socialista. No final, terminou com um apelo implícito: depois de dois anos e meio a governar com a ajuda de Bloco e PCP, o PS não deve ter qualquer problema em se afirmar como um partido que lidera à esquerda, sem qualquer complexo — e até com orgulho.
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