01 Maio 2018
O seguidores de Rajneesh, guru que liderou a transformação, revolta e tragédia numa cidade americana, está em seis partes na Netflix. Mas é um retrato real, mais improvável que uma obra de ficção.
Durante uma das minhas demasiado frequentes sessões de passeata pelo feed do Instagram, dei de caras com uma fotografia de uma ex-colega que em tempos se mudou para a Tailândia. Regressou entretanto a Portugal e ganha a vida a ler auras, como se fossem livros do Tintim ou do Lobo Antunes. Na foto tem um sorriso aberto e segura nas mãos um fascículo de Osho, que inspira a legenda com uma citação do mesmo:
“A criatividade é a maior rebelião que existe”
Há algumas semanas, esta imagem não me ficaria na memória. A minha paciência para a autoajuda new age é menor que o PIB do Burundi e achava que Osho era um ancestral japonês qualquer. Mas hoje sei, graças ao documentário original do Netflix “Wild Wild Country”, que é um dos nomes pelos quais ficou conhecido Bhagwan Shree Rajneesh — um indiano que nos anos 60 criou um culto que viria a ser infame pelos seus Rolls Royce e pelo ataque químico para envenenar a população de uma pequena cidade em Oregon. Pergunto-me a mim mesma se a jovem do sorriso instagramável conhecerá esta história.
É sobre a ida para os Estados Unidos do guru Rajneesh que se debruça o documentário em seis partes “Wild Wild Country”, produzido pelos irmãos Duplass (conhecidos sobretudo como actores e criadores de dramédias, como “Togetherness”). Com uma comitiva dos seus devotos mais próximos (encabeçada pela verdadeira protagonista da saga, a sua secretária Ma Anand Sheela), Rajneesh compra uma herdade junto à pequena povoação de Antelope em 1981. Na primeira metade da década aqueles hectares viriam-se a tornar na cidade complexa de Rajneeshpuran, com aeroporto e uma espécie de força armada.
[o trailer de “Wild Wild Country“:]
Num claro exemplo de como a realidade pode ser tão mais incrível que a ficção, o documentário é um tratado sobre como o Bem e o Mal estão constantemente a dançar o tango um com o outro. O que inicialmente parece a história de como uma pequena cidade americana de rednecks conservadores se insurge contra uma comunidade (os sannyasins) focada no amor livre, depressa se transforma num intenso plot sobre crime, traição e poder. Quem leu o clássico Deus Das Moscas sabe bem como surge esta hecatombe moral: todas as sociedades bem intencionadas acabam por ruir devido a esse imperfeito poço de defeitos que é o ser humano.
Quem é quem em “Wild Wild Country”?
Na ficção pós-“Sopranos” e “Breaking Bad”, ficou na moda o anti-herói – uma figura com honras de protagonismo que se comporta mais como um vilão do que como um herói, mas pelo qual o público torce exactamente por se sentir atraído pelas características tão humanas da sacanice. Em “Wild Wild Country”, depressa se percebe que não há bons nem maus, mas existe toda uma categoria de cinzentos morais em diferentes lados da barricada, cabendo ao espectador perceber de quem se quer por ao lado. Provavelmente, de ninguém.
Bhagwan Shree Rajneesh: líder do culto nascido em 1931, começou a ser um iluminado com apenas 23 anos, viajando por toda a Índia como orador. Logo na altura ficou conhecido por se opor às ideologias de Gandhi e por incitar a uma atitude mais permissiva da sexualidade. Nos anos 70 funda o movimento sannyasin. Já com muitos seguidores no seu país natal mas a braços com tensões com o governo, opta por se estabelecer na zona rural dos Estados Unidos. Durante os primeiros anos no Oregon remete-se ao silêncio, fazendo-se representar essencialmente pela sua secretária pessoal, que o acompanha já desde a Índia.
Bhagwan Shree Rajneesh
Sheela Birnstiel (ou Ma Anand Sheela): secretária de Rajneesh, inicialmente de sorriso largo, é aparentemente uma mulher doce e quase frágil. Mas as aparências iludem: Sheela governa a comuna com uma impiedosa mão de ferro, rendendo-lhe tantos aliados como inimigos dentro do rancho reconvertido. Também no contacto com o exterior começa depressa a revelar-se como uma mulher disposta a tudo para manter o sonho de uma comunidade dos sannyasins em expansão.
Sheela Birnstiel (ou Ma Anand Sheela)
Jane Stork (ou Ma Shanti B): australiana, faz parte do grupo de ocidentais que se mudou para a cidade indiana de Poona para absorver a ideologia de Rajneesh. Seguiu-o para os Estados Unidos, onde se tornou próxima de Sheela e acabou por servir esta numa rocambolesca tentativa de homicídio.
Jane Stork (ou Ma Shanti B)
David Berry Knapp (ou Krishna Deva): presidente de Câmara da cidade de Rajneeshpuran e peça chave nas investigações criminais contra o guru.
David Berry Knapp (ou Krishna Deva)
Philip Toelkes (ou Swami Prem Niren): advogado de Rajneesh e adepto fervoroso dos seus ensinamentos, é até hoje “coach de consciência” e usa vários dos conceitos de Osho.
Philip Toelkes (ou Swami Prem Niren)
Françoise Ruddy (ou Ma Prem Hasya): ex-mulher do produtor do filme “O Padrinho”, começa por ser a cabecilha dos seguidores do culto em Hollywood. Acaba por se mudar para Rajneeshpuran, fragmentando ainda mais a relação entre o guru e Sheela. Acaba por substituir esta na função de secretária.
Françoise Ruddy (ou Ma Prem Hasya)
Margaret Hill: presidente de Câmara da pequena cidade de Antelope , na qual o culto se instala. Desconfortável com a ideia de ser vizinha de um grupo de hippies fã de orgias, tenta desde logo expulsá-los. Acaba a braços com uma tentativa activa de que Antelope desapareça do mapa para dar lugar a Rajneeshpuran. Não é a única habitante a aparecer no documentário: o filho do fundador da Nike, JonBowerman, também era um fervoroso conservador ansioso desde o primeiro instante com o que se passava na herdade.
Margaret Hill
Charles Turner e Robert Weaver: procuradores responsáveis pela investigação criminal ao culto.
Charles Turner e Robert Weaver
O empreendorismo de um culto que dura até hoje
A história é sumarenta e constantemente surpreendente, rivalizando com as mais empolgantes séries do momento (chega para lá, “Casa de Papel”). Apesar do caso ter tido honras noticiosas durante quatro anos de constantes escândalos — mais o tempo do julgamento dos crimes após o colapso da comunidade no Oregon —, não é um caso assim tão conhecido fora dos Estados Unidos. Porém, já teve algumas menções na cultura pop, como por exemplo no episódio 13 da nona temporada dos Simpsons, intitulado “The Joy Of Sect” – no qual aparece um guru a andar de Rolls Royce pelo meio dos fiéis, tal como Rajneesh fazia diariamente na herdade. E caso se estejam a perguntar se de facto um guru de uma humilde seita indiana tem tamanho carro de luxo, a resposta é ainda mais surpreendente: Osho tinha não um, mas sim um total de 93 Rolls Royces.
[excerto do episódio “The Joy of Sect” dos Simpsons]
Rajneesh não dizia que não ao luxo (além de carros, gostava mais de diamantes do que a própria Marilyn Monroe). Aliás, parte da inteligência do guru era não negar à partida nada que fosse do agrado do seu potencial “cliente”: o homem branco com um curso superior e uma vida financeiramente confortável. Foi aqui que o indiano foi um pioneiro do empreendorismo espiritual, percebendo que havia uma classe com posses que precisava de espiar o seu sentimento de culpa privilegiada e os seus first world problems. Financeiros, advogados e até produtores de Hollywood seguiram-no sem pestanejar. Não sem antes financiar amplamente o movimento espiritual, claro.
Porém, o discurso de amor livre e de emancipação criativa depressa se tornou incongruente: tal como qualquer conferência de imprensa da implacável Sheela demonstrava em poucos instantes, o sorriso e o discurso articulado não eram suficientes para esconder uma sobranceria e superioridade em relação aos não-sannyasins. Esta incongruência depressa escalou para um “nós contra eles” com contornos de guerra civil. O envenenamento a cidadãos de Antelope através de químicos na comida (tido como o primeiro ataque bioterrorista da história americana) é talvez o momento mais emblemático deste conflito, mas está longe de ser solitário. Nem é sequer o único crime cometido em nome ao amor por Rajneesh.
Hoje em dia, o legado de Osho (nome que Rajneesh adoptou poucos anos antes de morrer, em 1990) permanece aparentemente imaculado perante tamanha epopeia. Os livros continuam a vender-se e as citações continuam pelas redes sociais. Várias comunidades ainda se juntam para celebrar os seus ensinamentos um pouco por todo o mundo – e Portugal não é excepção (é aliás citado no documentário como um dos locais a ter comunas). Uma reportagem da revista Visão em Junho de 2010 relata a experiência no Osho Festival, na Herdade Pomar da Serra, junto a São Teotónio (Alentejo). Também aqui são os licenciados com uma vida confortável quem mais se deixa seduzir pela meditação, pelo autoconhecimento e pela Dança dos Amantes – uma espécie de orgia, pois claro. O amor livre continua a ser um dos melhores conceitos de marketing do franchising Rajneesh.
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