por estatuadesal
(Francisco Louçã, in Expresso, 02/06/2018)
Há crises políticas estruturais em Itália, Espanha, ameaçam França, o ‘Brexit’ está a concluir-se, a instabilidade financeira voltou e ninguém se entende no Conselho Europeu
Quando a crise financeira se transformou em crise das dívidas soberanas e atingiu as economias europeias periféricas, era uma questão menor para Berlim e Bruxelas. Nada que não se resolvesse com uma cura de culpa e austeridade, vantajosa para conseguir votos nos países centrais cujos governos mostravam músculo contra os recalcitrantes do sul. Quando a crise chegou a Espanha, disfarçou-se um programa para os bancos. Quando a crise chegou a França, era só uma questão política, mania de franceses que são sempre excessivos nos queijos e nas eleições. Mas agora a crise está por todo o lado e é política e social. E ninguém na liderança europeia tem a menor ideia sobre o que se deve fazer, acumulando o pior dos disparates, as ameaças esbracejantes.
Um ano desastroso
O problema é que as eleições é que têm sido o problema. Desde há um ano que cada uma das eleições europeias agrava a crise institucional e demonstra o estertor do bipartidismo que tem sido a forma de gestão política desde o pós-guerra. Foi assim na Holanda em março de 2017 (a Europa respirou de alívio porque a extrema-direita só ficou em segundo lugar, e o PS passou de segundo para sétimo lugar), em França (a extrema-direita em segundo lugar e uma crise dos partidos tradicionais, com o ascenso da nova direita macronista que destroçou o PS), na Áustria (a entrada da extrema-direita no Governo), como já era na Hungria, Polónia e República Checa (com maiorias de direita xenófoba). Na Suécia, a extrema-direita é a terceira força política.
Na Alemanha, o único dos grandes países da União Europeia em que ainda sobrevive um bipartidismo combalido, os herdeiros do nazismo entraram no Parlamento pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial e pressionam uma ameaçadora recomposição da direita. E agora temos o caso de Itália, com a Liga Norte em vias de se transformar no primeiro partido.
Em resumo: crises políticas estruturais estão instaladas em Itália e Espanha, ameaçam França, o ‘Brexit’ está a concluir-se, a instabilidade financeira voltou e ninguém se entende no Conselho Europeu.
Espanha e Itália em eleições
O fim anunciado do governo Rajoy, com o PP varrido por condenações por corrupção, deverá conduzir a eleições em Espanha. Não é difícil antecipar o resultado dessas eventuais eleições, dado que as sondagens consistentemente indicam a possibilidade de uma vitória do Ciudadanos, a versão moderna do Partido Popular (“o PP limpinho”, explica Portas), o que conduziria a uma coligação da direita, mas sem Rajoy e porventura com o PP reduzido a escombros, ou até a uma aliança com o PSOE. O PP tem sido a formação histórica hegemónica da direita espanhola e representou o sucesso da transição do franquismo para uma direita europeísta, sempre mantendo um cariz autoritário, mas a condenação judicial do seu tesoureiro e de uma máfia de empresários e dirigentes foi o sinal da implosão. Rivera-Macron é uma promessa para salvar as pratas da casa, mas garante mais instabilidade do que liderança.
O cenário italiano é ainda mais complicado. A primeira recusa pelo presidente Mattarella do governo da maioria parlamentar italiana, que coligava a Liga Norte, um movimento proto-fascista, e o 5 Estrelas, foi um pretexto: o ministro recusado, Paolo Savona, deveria ser dos menos imprevisíveis da equipa governamental, mas o presidente quis marcar uma proibição – o euro não se discute e está fora do âmbito de ação de um governo maioritário.
A confirmação veio pela precipitação do comissário Gunther Oettinger, que explicou aos italianos que os mercados financeiros lhes dariam uma lição sobre em quem votar. Oettinger é reincidente: durante o período da troika, sugeriu que “as bandeiras dos pecadores da dívida poderiam ser colocadas a meia haste nos edifícios da União Europeia” para envergonhar esses países “pecadores”, e propôs que as ilhas gregas fossem vendidas para acertas contas da dívida. Mais recentemente, defendeu que Portugal devia sofrer sanções pelo défice de 2015. Useiro e vezeiro em pesporrência, Oettinger é o retrato alemão da Comissão.
Não é difícil adivinhar o efeito destas ameaças nas eleições italianas. Numa viragem de última hora que relançou o mesmo governo, o chefe da Liga Norte, Salvini, só pode dar preces pela chantagem de Bruxelas, que é o seu seguro de vida.
E os mercados, senhor?
A crise em dois dos grandes países europeus precipitou imediatamente uma subida dos juros e uma queda do euro, e ainda se verá o que vem depois, porque a novela não terminou. A Itália e Espanha têm pela frente pelo menos quatro meses de dúvida sobre o resultado das eleições de recurso. São dois gigantes europeus paralisados e na expectativa de eleitorados mais divididos e governos mais impotentes. O facto é que, uma vez destroçado o esquema do bipartidismo do pós-guerra ou, no caso espanhol, da transição pós-franquista, não se sabe o que pode acontecer.
Os mercados, em contrapartida, sabem bem o que querem. A emissão de títulos de dívida italiana a dez anos teve a sua maior procura desde 2014, porque se sabia que os juros iam ser mais saborosos. Quase duplicaram, de 1,7 para 3%, arrastando os de outros Estados. Este maravilhoso sentido de oportunidade demonstra o que vamos ter na Europa: crise política permanente com subida de taxa de juros. Segure a sua carteira, já sabe quem vai pagar isto, não sabe?
O retrocesso civilizacional
Manuel Linda, bispo do Porto, esgrime no último Expresso uma notável recusa da eutanásia com base no “retrocesso civilizacional”. Escreve o prelado que no caso da legalização do aborto se passou do fim de uma proibição e penalização para uma normalização do ato médico e daí conclui, com algum atrevimento, que então se caminha inevitavelmente para a sua imposição obrigatória. Foi assim, com a elegância de que o bispo é capaz: “Repare-se: de ato ‘mau’ despenalizado, passou a ato regulado; depois, a ‘normal’; agora, deseja-se desregulado; e já se argumenta que é um simples ato terapêutico. Como tal, bom. E a seguir? Certamente, terá de ser algo de natureza obrigatória. Como as vacinas”.
Como as vacinas? É até difícil de interpretar o que este remate de frase pretende explicar. Mas percebe-se o sentido do alarme: o aborto vai ser obrigatório. Não sei se isto merece respeito pela insolência ou reconhecimento pela imaginação, mas é o bispo a escrever. Conclui ele que também a eutanásia, a ser despenalizada, se tornará obrigatória. O “Avante!” sugeriu precisamente o mesmo, ao fantasiar para os leitores mais crentes que os idosos da Holanda fogem para a Alemanha com medo que lhes seja imposta a eutanásia.
O problema é que nem a Igreja Católica nem o PCP acreditam no que afirmam. Sabem que na próxima legislatura existirão condições para a aprovação da lei, malgrado a sua oposição, e é por isso mesmo que agem agora contra a lei, mas não demasiadamente contra. Sabem também que a teoria da obrigatoriedade ou da imposição da eutanásia é da mesma laia da velha acusação da ditadura contra os comunistas por matarem os velhinhos com injeções atrás da orelha. Por isso, o PEV apresenta uma proposta, mesmo quando o seu parceiro de coligação afirma que se trata de nada menos do que de um “retrocesso civilizacional”. Como não pode deixar de ser, é uma estratégia combinada com o seu tutor.
Do lado da Igreja, o bispo do Porto anuncia o apocalipse e o cardeal também fez um apelo, mas note-se que em tom menos tremendista. O certo é que a Igreja evitou arriscar-se. As manifestações de Isilda Pegado e do PNR foram extravagâncias de um sector muito marginalizado da Igreja, que não se comprometeu demais. Depois da derrota do referendo português sobre o aborto e com a recente lição do referendo irlandês, a Igreja Católica sabe bem que não pode nem deve promover disputas cujo resultado inevitável seja diminuir o seu peso social e limitá-la ao culto. A Igreja sem poder não se reconhece e por isso calcula os seus movimentos para evitar derrotas demasiado evidentes.
Os aliados de ocasião desta frente do “retrocesso civilizacional”, os deputados do PSD que querem atingir Rui Rio, as claques de futebol infiltradas pela extrema-direita, os sectores ultramontanos da Igreja, as conveniências do PCP, nada disso resiste ao tempo nem à razoabilidade de uma proposta cuja força é o respeito pelas pessoas que têm o direito a fazer uma escolha sobre a sua vida.
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