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sábado, 2 de junho de 2018

O clube dos bem-pensantes

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 02/06/2018)

mst

Miguel Sousa Tavares

(Vale a pena ler o MST, seja para concordar, seja para discordar dele. Ao menos, é coerente nas posições que vai defendendo e não se esconde atrás de biombos. Destaco sobretudo a mais que propositada comparação do último parágrafo entre a queda da Europa e a queda do reino mouro de Granada. Brilhante comparação.

Comentário da Estátua, 02/06/2018)


1 Terminada a votação da eutanásia na Assembleia da República, as câmaras de televisão só estavam interessadas em focar-se num grupo formado a meio do hemiciclo que reunia os principais animadores dos pró-eutanásia, os que acabavam de perder a votação: do PS, do BE, dos Verdes, da JSD e o deputado do PAN (que sabiamente está sempre em todas as causas “fracturantes”, para daqui a pouco apresentar a factura aos seus correligionários destas causas, sob a forma de lhes cobrar apoio para a proibição das touradas e da caça). Dava gosto vê-los todos e todas abraçados e aos beijos, saboreando uma triunfal derrota. Ainda eles se abraçavam e beijavam e já Catarina Martins falava à SIC Notícias cá fora, explicando naquele seu tom de quem vê sempre melhor, mais à frente e mais acertadamente do que todos que aquela derrota parlamentar fora apenas um breve contratempo na próxima e fatal aprovação de novo projecto de lei de despenalização da eutanásia. Seguem-se, frente ao microfone da SIC Notícias, mais duas opiniões: ambas de deputadas e ambas a favor da eutanásia. E reportagem concluída. Não me lembro de ver alguma derrota parlamentar tratada com tanta glória e honraria nem vencedores tratados com tamanho desprezo. Dir-se-ia que só uma das posições é que era digna de consideração.

Não tenho a mais pequena dúvida de que, sob uma forma ou outra, com esta ou outra designação, a eutanásia é praticada diariamente, pelo menos nos hospitais públicos portugueses. Por médicos com sentido profissional e humano que decidem em consciência e caso a caso, sem necessidade de um testamento vital, de sugestões de familiares ou de uma intrincada lei. E também não tenho dúvida de que pelo menos nos hospitais privados sucede infelizmente o oposto: uma coisa a que dificilmente se pode chamar medicina e que consiste em manter artificialmente vivos doentes sem qualquer esperança de recuperação, num processo que consiste em transferir parte da herança do doente dos seus herdeiros legítimos para a sociedade dona do hospital. Quer num caso quer noutro, duvido que lei alguma consiga abranger e resolver na prática todas as questões clínicas e éticas que se colocam na hora da verdade. A crença de que uma lei, por melhor que seja a sua redacção, pode resolver qualquer problema é um mito que conduz a simplismos que se revelam afinal becos sem saída. Esse era o primeiro problema colocado pelo debate na AR: saber exactamente o que se pretendia alcançar, o que se pretendia evitar e que lei poderia conciliar tudo o que estava em jogo.

Mas o que se fez foi o oposto: avançar de qualquer maneira, sem um debate profundo, sem uma tentativa séria de tentar conciliar posições opostas — se calhar, por desconhecimento mútuo do que estava em causa para cada um dos lados — e apenas para se manter o ritmo e a agenda do clube dos bem-pensantes (que não são todos, atenção, mas uma franja, sempre na moda, que aparece nestas ocasiões, arvorada em vanguarda “fracturante”). Como se houvesse qualquer identidade argumentativa entre, por exemplo, a defesa do casamento entre homossexuais e a defesa da eutanásia! Com tamanha pressa, tamanho desprezo pelo que pensaria a sociedade, tamanha indiferença pela necessidade de convencer antes de vencer que nem se importavam de, num assunto de tão grande importância, levarem a sua avante, nem que fosse pela diferença de um simples voto!

Não me lembro de ver alguma derrota parlamentar tratada com tanta glória e honraria nem vencedores tratados com tamanho desprezo

O “irritante”, para mim, é pensar que, tirando a adopção por casais homossexuais e a equiparação de direitos entre as uniões de facto e os casamentos (que não é nenhum avanço mas sim uma intromissão abusiva do Estado no livre-arbítrio das pessoas), eu estive sempre de acordo com toda a agenda “fracturante”, várias vezes antes deles e por vezes para lá deles. Mas era incapaz de me juntar a eles. Era incapaz de ir jantar com eles à Bica do Sapato e, menos ainda, de ir celebrar vitórias legislativas para o Lux. Porque há, neste clube dos bem-pensantes, uma atitude militante de arrogância intelectual, de snobismo social e político e de pretensa superioridade ética que me faz apetecer pôr-me a milhas e quase mudar de ideias para não ter de suportar tais companhias para ideias cuja razão, tantas vezes, residiria antes na discrição e na humildade da discussão.

2 O Estado cobra anualmente cerca de 3,5 mil milhões de euros de receita com o ISP (Imposto Sobre Produtos Petrolíferos), o equivalente a 7% do total da receita fiscal, uma brutalidade (5% em Espanha, 3% em França e na Alemanha). Por isso, somos o 5º país europeu com a gasolina e o gasóleo mais caros. Como o ISP estava indexado ao preço do barril de petróleo e este esteve em queda e a baixo custo longo tempo, o Governo começou a ver as suas preciosas receitas a diminuir e procedeu a uma alteração das regras do jogo: a taxa passou a ser fixada num mínimo, independentemente do custo do litro de gasolina ou gasóleo e correspondente aos tais 3,5 mil milhões de euros. Deste modo, o Governo recebia sempre o mesmo, fosse qual fosse a queda de preço na origem, mas os consumidores só beneficiavam em parte dessa queda: o resto era roubado pelo Estado. Para sossegar a sua má consciência e acalmar os protestos, o Governo comprometeu-se solenemente a rever a situação a cada três meses e a descer o ISP proporcionalmente caso o petróleo começasse a subir na origem e, consequentemente, a gasolina e o gasóleo começassem também a subir nas bombas para os consumidores. Era o mínimo que podia fazer. Mas eis que o petróleo e os combustíveis nas bombas portuguesas sobem consecutivamente há dez semanas e o Governo... nada. Aproveita a subida e aumenta a receita fiscal. Enquanto os consumidores agora veem-se penalizados duas vezes: pelo aumento do preço do petróleo e pelo aumento do imposto. E o que diz o Governo? Que vai criar um grupo de trabalho. Com a missão de estudar o que se poderá fazer no OE... de 2019. Chama-se a isto má-fé. E um Estado de má-fé perde a legitimidade para punir a fuga fiscal. Quem nos defende de um Estado de má-fé?

3 Pobre Europa! Foi a crise das dívidas soberanas, Portugal, Grécia, Irlanda e Chipre à beira da falência e da saída involuntária do euro, o sistema bancário europeu em quase colapso. Depois, a crise dos refugiados, milhões de seres humanos a atravessar o Mediterrâneo em busca de uma hipótese de vida e metade da Europa a fechar-lhes as portas. Depois, o ‘Brexit’ e os seus ridículos personagens: Nigel Farage, Boris Johnson, Theresa May. Depois, a Turquia, a responder ao alheamento da Europa com a aproximação à Rússia e o fim do processo de democratização. A emergência de ditaduras protofascistas na Hungria e na Polónia e latentes na República Checa, na Finlândia e na Áustria. O Daesh e os meninos terroristas europeus a quem, não sei por que razão, se permite o regresso em paz para virem brincar à Jihad nas cidades europeias. A ameaça eleitoral do populismo de extrema-direita em França, na Alemanha, na Holanda, na Dinamarca. A catástrofe da eleição de Trump, a rasgar o acordo com o Irão e a fazer chantagem com as empresas europeias que negoceiem com Teerão, a rasgar o Acordo do Clima de Paris, a lançar o caos no Médio Oriente e a ameaçar com uma guerra comercial à Europa. O separatismo catalão, vindo para destabilizar a Espanha na pior altura. E agora, para acabar, a Itália entregue a um louco fascista e a um partido “anti-sistema” e ambos anti-Europa. Anti-sistema? Mas qual sistema? E anti-Europa? Mas qual Europa?

Restará pedra sobre pedra do que outrora chamámos sistema democrático e União Europeia? Chora, Angela Merkel. Chora como o rei mouro Boabdil, ao abandonar o Alhambra, depois de se ter rendido aos Reis Católicos, Fernando e Isabel. E lembra-te do que lhe disse a sua mãe ao vê-lo prostrado: “Chora agora como uma mulher o que não soubeste defender como um homem!”


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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