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sábado, 2 de junho de 2018

O problema são vocês, senhor Oettinger

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 01/06/2018)

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(Pode um país - ou uma união de países -, ser soberano quando a sua moeda é ela própria dependente de terceiros? Não pode. É o caso do Euro. O facto de o BCE ser um banco central de poderes amputados torna o Euro uma moeda coxa. O BCE não pode exercer a função de "prestamista em última instância" que está sempre associada à entidade que emite moeda num país soberano. Essa função está, na zona Euro, entregue aos "mercados", por vontade da Alemanha. Logo, quem manda na Europa, mais que Merkel, são os ditos "mercados". E são sempre eles que são invocados quando os eleitores se "portam mal"...

Comentário da Estátua de Sal, 01/06/2018)


Ainda o fogo de Itália não estava extinto e já uma nova frente, em Espanha, está em chamas. Como não tenho reforços para tudo, fico-me, por agora, pelo incêndio italiano. Sobre Espanha, sabemos que desligaram a máquina a Mariano Rajoy para dar lugar lugar a um governo de um PSOE igualmente comatoso que por sua vez dará lugar a eleições que por sua vez deverão dar o poder ao Macron espanhol que tentará reconstruir a direita, dando-lhe um ar mais moderno para fazer a mesma coisa. O destino espanhol deverá ser o que temos visto pela Europa fora: o esvaziamento de um centro-esquerda incapaz de se afirmar com um discurso verdadeiramente alternativo. Mas ainda estrebucha para matar um moribundo.

Em Itália isso tudo é passado. É ali que funciona o laboratório político da Europa. Nem todas as maluqueiras que por lá são testadas vingam, mas se alguma coisa acontece por essa Europa fora já aconteceu ou esteve quase a acontecer em Itália. A implosão do centro e da esquerda é coisa requentada em Roma, com a transformação do mais heterodoxo, democrático e poderoso partido comunista da Europa ocidental numa coisa em forma de assim-assim que junta ex-comunistas e democratas-cristãos, num albergue italiano onde a única coisa que os une é o apego ao poder, a mediocridade dos seus líderes e um europeísmo acrítico.

As vitórias do Movimento 5 Estrelas e da Liga (que já foi do Norte) são resultado das razias sucessivas do sistema partidário italiano, que começou com a operação “Mãos Limpas” e acabou em Mario Monti, um primeiro-ministro tecnocrata escolhido pela Comissão Europeia e que, quando foi às urnas, menos de dois anos depois, valia 10%.

Nas últimas eleições chegou-se ao refinamento final. Delas nasceu um acordo de governo entre o 5 Estrelas e a Liga. Um casamento entre um partido de extrema-direita e um movimento “pós-ideológico” que é legitimo à luz dos resultados eleitorais. No uso dos seus poderes constitucionais (apesar de não ser, ao contrário do que acontece em Portugal, diretamente eleito), o Presidente italiano Sergio Mattarella não deu posse à primeira versão do governo. A razão apresentada, e entretanto resolvida, foi a escolha de Paolo Savona, um eurocético assumido, para ministro da Economia e Finanças. Tendo em conta as posições dos dois partidos sobre o euro e a União Europeia estranho seria que a sua primeira escolha fosse um euroentusiasta.

Em Itália, onde foi possível ser primeiro-ministro e acusado de todo o género de crimes de corrupção, onde se pode concentrar quase todos os meios de comunicação social e governar ao mesmo tempo, não se pode ser contra o euro e ministro. Perante um governo que tem como ministro do Interior um líder de extrema-direita que defende deportações em massa de imigrantes (Matteo Salvini, da Liga), o problema era um ministro das Finanças eurocético. Acho que estamos conversados sobre as prioridades políticas do nosso tempo. Não é por acaso que a Grécia foi vergada e a Hungria continua viçosamente fascista.

Perante o impasse italiano, o risco era, se Liga e 5 Estrelas não cedessem, haver novas eleições e os dois partidos crescerem mais um pouco. A não ser, claro, que se instalasse o pânico nos mercados e os italianos se assustassem. É nisso que apostavam os eurocratas.

O comissário europeu Günther Oettinger expressou o seu desejo: que os mercados ensinem os italianos a votar. Responsáveis europeus engasgaram-se, a ministra francesa dos Negócios Estrangeiros abanou o leque nervoso, Juncker acordou num sobressalto. Esta mania que os alemães têm de abrir o jogo e dizer em público o que eles pensam em privado. A verdade é que a gestão do euro é incompatível com as democracias nacionais.

Por isso, os responsáveis do governo da União têm, na forma como olham para os Estados-membros, um pensamento automaticamente antidemocrático. Consideram as eleições uma formalidade aborrecida que, caso não corra como está no guião, deve ser corrigida por uma ação punitiva. E é nessa ação punitiva que repousa a estabilidade da União. O problema dos eurocratas é que, ao contrário do que aconteceu com a Grécia, com o Chipre ou com Portugal, é impossível vergar Itália. É uma economia demasiado importante para brincarem com ela. A chantagem não pode chegar a vias de facto.

Claro que as palavras de Oettinger têm, ao mostrar o total desprezo pela vontade democraticamente expressa pelos italianos , o problema de colocar a extrema-direita e o 5 Estrelas do lado da defesa da democracia e da representação do povo contra a chantagem de quem atiça os mercados contra ele. Entregam a quem nunca esteve do lado da democracia a defesa da democracia. Não há nada que legitime mais Salvini, Le Pen ou Farage do que a sinceridade desastrada de gente como Oettinger. Como estar contra eles quando um tipo que não foi eleito por ninguém, mas manda mais do que todos os eleitos, deseja que um povo seja punido pelo seu voto?

A União Europeia é, hoje, uma máquina de vitórias eleitorais de demagogos e extremistas. E vai continuar a ser até que Bruxelas se afogue no seu próprio autismo político. Podemos todos continuar a fingir que o problema são os eleitores italianos, gregos, franceses, holandeses, polacos, ingleses... o problema, caro Oettinger, são vocês.

E só quando deixar de ser sinónimo de “populismo” dizer que deixámos de controlar este Frankenstein e deixar de ser “radical” a recusa em ser governado por quem não depende do nosso voto é que travaremos esta correria trôpega para o precipício. Não sei se ainda é possível salvar União. Mas a prioridade é salvar as democracias. E desde que a UE começou a contribui de forma tão evidente para a sua degradação passou a fazer parte do problema, não da solução.

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