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sábado, 30 de junho de 2018

Pseudo-Ernesto e os Professores

  por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 29/06/2018)

Guerreiro

António Guerreiro

Quase ao mesmo tempo em que o jornalista João Miguel Tavares se aplicava a responder a uma pergunta tormentosa formulada no título de um dos seus textos recentes, “Porque é que os professores irritam tanta gente?”, uma revista francesa feita maioritariamente por gente irritante – professores e “cientistas sociais”, que uma convenção da escrita jornalística costuma colocar entre aspas – acolhia um jornalista do Le Monde para responder a uma pergunta de flagelo: “Porque é que os jornalistas são tão detestados?”.

O demónio da simetria deve ter alguma responsabilidade neste confronto telepático. No seu exercício reflexivo, o jornalista francês apontava quatro factores para explicar a irritação clamorosa que os jornalistas provocam: 1º) a imagem dos jornalistas está completamente identificada com a imagem dos políticos, o que é um fenómeno novo na história do jornalismo, e ambas as classes são vistas como fazendo parte do mesmo mundo, dito justamente “político-mediático”; 2º) os jornalistas são assimilados às elites; é uma “assimilação paradoxal”, um erro que se foi propagando pelo discurso livre da opinião, diz o jornalista do Le Monde, porque mais de 90% deles  “estão muito distantes das elites”, em todos os planos: “no estatuto social, nos recursos financeiros, na formação cultural”; a pequeníssima percentagem de stars que serve o regime do espectáculo mediático tem um poder de amplificação e irradiação tão grande que não há mais brilho que se veja; 3º) a representação negativa dos jornalistas enquanto mensageiros das más notícias e anunciadores de um mundo cheio de tragédia, crise e infelicidade, sendo muito embora inerente à profissão, acentuou-se e ganhou no nosso tempo uma dimensão quase demagógica; 4º) graças à evolução das novas tecnologias, os jornalistas tornaram-se cúmplices desse novo edifício político que é a “democracia da opinião”, o discurso moral e prescritivo, o triunfo do imediato, a submissão às tonalidades emotivas. Acumulando estes quatro factores, escreve o jornalista do Le Monde, “chega-se a uma imagem da profissão jornalística que se parece com o carregar uma cruz”.

Recuemos, incitados pela maldita simetria: nos anos 70 do século passado, Ivan Illich concebeu o projecto utópico de “descolarizar” a sociedade (o objecto da sua irritação não eram os professores); mais de 70 anos antes, um outro austríaco, Karl Kraus, tinha encetado uma luta mortal pela “desjornalização” da sociedade (o objecto da sua irritação eram mesmo os jornalistas).  Avancemos agora para o epílogo: alguns dias depois de João Miguel Tavares ter colocado a magna questão, um outro jornalista desta casa escreveu uma crónica sobre a escola partindo da personagem de um livro e de um filme de Marguerite Duras, Ernesto, que ao chegar a casa depois do primeiro dia de escola declara à sua mãe: “Não voltarei à escola porque na escola ensinam-me coisas que eu não sei”. Na versão do autor da crónica, Ernesto teria dito que não voltaria à escola porque os professores só lhe ensinavam o que ele já sabia. O equívoco é inocente, provavelmente o filme tinha sido visto há muito tempo e a memória atraiçoa. Mas em abono de uma simetria recorrente, apraz-me pensar que à pergunta do jornalista João Miguel Tavares deu Vítor Belanciano uma resposta competente, embora involuntária, ao retirar à recusa de Ernesto todo o seu sentido filosófico.

Os professores irritam, acima de tudo porque têm uma missão impossível (Freud desenvolveu a questão da “impossibilidade” que caracteriza todo o ensino). Que pena João Miguel Tavares não se chamar Ernesto!

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