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terça-feira, 3 de julho de 2018

Ladrões de Bicicletas


Não há alternativa

Posted: 03 Jul 2018 02:57 AM PDT

O The Guardian apoda o vencedor das eleições presidenciais mexicanas, André Manuel López Obrador, de “nacionalista de esquerda”. O que é crítica para uns, é elogio para outros: lá como cá, as questões nacional e social não podem nunca deixar de ser concretamente articuladas; cá como lá, é preciso reconquistar margem de manobra para políticas nacionais de desenvolvimento, o que passa no mínimo por renegociar os acordos de comércio dito livre. A esquerda que pode ganhar é a que quer aprender a falar a língua nacional-popular.
Apesar de todos os obstáculos colocados numa sociedade brutalmente desigual e violenta, demasiado próxima dos EUA, com um Estado fragilizado pela corrupção ou pelos efeitos da NAFTA, e de alguns compromissos duvidosos com forças sociais e políticas duvidosas, a sua eleição à terceira tentativa é uma excelente notícia para as classes subalternas mexicanas, surgindo ainda para mais num contexto geral, latino-americano, de recuo das forças da esquerda nacional-popular. Esta esquerda pode também recuar, mas é a única que pode avançar de novo.
Num artigo informativo no Le Monde diplomatique do mês passado, René Lambert resumia o dificílimo estado mexicano de coisas, usando uma fórmula de aplicação mais geral perante o poder por conquistar: “a tentação da esperança”. Não há alternativa a essa tentação.

Carrocel infernal

Posted: 02 Jul 2018 03:11 AM PDT

Imagens do filme Starwars - The Phantom Menace (1999)

Na semana passada, fui buscar o carro ao mecânico.
Eu já estava pronto para pagar, mas o mecânico adiava o momento. Conversava sobre tudo e não se resolvia a transacção. Pressenti que alguma coisa se passava e deixei a conversa fluir. Tudo se transformou num longo desabafo de uma hora.
O que segue é o relato resumido, mas que dá, um pouco, a ideia do impasse económico em que nos encontramos, com um semi-regime de austeridade, sem que se encare os problemas de frente.
Dizia o mecânico:
- Desde que me conheço que trabalho. Tenho 67 anos e mais de 50 anos de oficina. Trabalhei muitas horas, fiz muitas directas. Era preciso. Ainda tenho força, mas a cabeça... Já me esqueço de muitas coisas. Eu até ficava mais anos, mas estou aqui, estou a fechar isto.
- Mas o que se passa?

- Estou farto. É tudo muito complicado. As pessoas vêm aqui e todas pedem descontos. E a gente faz o que pode porque sabe que não têm dinheiro. Pedem pagamentos a prestações e aceitamo-los. Eu já disse ao meu filho... Ele andou na faculdade de Educação Fisica, fez mestrado, ainda foi professor secundário, mas eram uns horários aqui, outros ali. Pagava mais de gasóleo do que ganhava como professor. Veio para aqui. Mas já lhe disse: "Arranja alguma coisa que só dependa de ti. Já viste como foi a minha vida, o apoio que te dei e como estamos. Não dá". Dizem que isto está melhor, mas não está.
- Porquê?
- Porque é tudo a jogar contra. É como as grandes superfícies que dão cabo dos lugares e mercearias. As companhias de seguro têm as suas oficinas e oferecem logo ao cliente um carro de substituição. Depois, o cliente acaba por perceber a porcaria de trabalho que lhe fizeram, mas já é tarde. Os carros são cada vez mais complexos e têm de ser tratados pelas marcas. Há oficinas a fechar. E quando vierem os carros eléctricos vai ser geral. E depois não encontro mão-de-obra. Não querem. Vêm para aqui e nem querem aprender. Tive aqui uns estagiários daquelas acções de formação do IEFP. Não deu: não sabem nada e nem querem saber. Disseram-me logo que vinham só por uma semana porque tinham o subsídio de desemprego suspenso e não lhes convinha. Não arranjo mão-de-obra. Antes cada oficina tinha aprendizes que começavam e iam crescendo aqui. Chegávamos a ter uns tantos. Mas agora não dá. Eles não querem. E veja lá: Portugal esteve como esteve, depois o Passos Coelho - nem sei como - lá foi endireitando as coisas, mas agora estão todos a pedir cada vez mais coisas e sabe-se lá o que vai acontecer.
Nem discuti esse suposto papel positivo da política de austeridade, que em parte explica os problemas do mecânico. Pensei como a comunicação social acaba por marcar o que as pessoas pensam e como ainda transmitem essa medo de que tudo vai rebentar de novo. Como se nada tivesse sido aprendido: 1) esqueceu-se já a enorme depressão causada pela austeridade e que acabou interrompida pela própria troica; 2) esqueceu-se o aumento substancial da divida pública após a intervenção da troica e que tornou o país ainda mais fragilizado face aos ditos mercados financeiros, porque a dívida é simplesmente impagável... 3) E pior: esqueceu-se que essa fragilidade não vai lá com pouparmos mais do pouco que se tem, porque nunca será suficiente. Se as taxas de juro subirem vários pontos percentuais, nada será sustentável! 
Devo ter feito, pois, algum esgar porque ele reagiu de imediato.
- Eu não sei qual é a sua política. A minha é o trabalho.
- Mas - disse eu - se as coisas estivessem melhor, se pudesse cobrar mais aos clientes, já poderia pagar salários maiores e assim talvez os aprendizes quisessem ficar para trabalhar...
- Ah sim! Isso sim, talvez. Mas não é possível. Ninguém pode pagar mais e percebe-se que não têm dinheiro. E depois é só cairem em cima de nós. Olhe, há umas semanas tive aí uma inspecção. Vieram todos: era a Autoridade Tributária, a ASAE e mais não sei quem. Entraram por aí, sentaram-se nos computadores. Eu pensava que mandava nisto e que isto era meu! Mas afinal não era. E é só exigir coisas. Complicam. É só complicações. É para isto, é para aquilo. Tive de pagar 2 mil euros por causa de um filtro por causa das emissões das pinturas. Ná. Eu fecho portas. Mando tudo à fava. Vou para uma terra que tenho, oito mil metros quadrados ali para Palmela.
- Vai fazer o quê?
- Não vou fazer nada. Planto umas coisas e deixo-me ficar. Já estou cansado. Foram muitos anos. Mas se eu visse que valia a pena ia ficando, mas assim, não! Prefiro ir-me embora.
Um miúdo equipado com uma camisola de jogador dava pontapés numa bola contra a parede da oficina. O mecânico enxutou-o, para que fosse jogar para outro lado. O miúdo tinha o cabelo muito curto e sorria. Ficámos os dois em silêncio.
- Desculpe o desabafo, mas às vezes também precisamos. Se calhar, isto é pensar o pior e depois as coisas não são assim tão más. Mas já não vou saber.
Paguei, despedimo-nos. Um aperto forte, de uma mão forte.
Quando se olha para esta descrição parece que vivemos num carrocel que roda, infindável e sem apelo, para o precipício. A austeridade mantém-se e vai encarquilhando o tecido económico que vai desistindo e que, por isso, acentua o seus efeitos. O Estado parece trabalhar para a construção de um biombo decorativo em que faz de conta que se aplicam as melhores e mais modernas regras - muitas delas positivas, vindas da Europa - sem que a outra parte do Estado, a do Estado visionário, precaveja os seus efeitos perversos ou sem que haja uma política pública de relançamento económico.
Parece que o país está preso à Europa, ela também desequilibrada, desigual e que acentua as dificuldades entre países, mesmo através dos seus sumarentos fundos estruturais cuja distribuição social está para ser estudada. E estes efeitos todos jogam na diminuição dos agentes económicos que, por acaso, jogam a favor de unidades de maior envergadura que passam a ter condições para fixar os preços de mercado, os preços de mão-de-obra e o volume dos lucros, que se transferem para os accionistas ou para fundações de fins louváveis, mas cuja finalidade é – como todos sabemos – outra. E que, sobre as quais, o Estado não tem qualquer coragem de mexer...
“Eles dizem que está tudo bem, mas não está”.

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