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quinta-feira, 12 de julho de 2018

Olha uma última vez para o lugar que estás a deixar

Opinião

Miguel Guedes

Ontem às 00:06

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O acto de saída é um momento como nenhum outro. Não significa a despedida de algo ou que a sua presença se retire de nós. Estamos muito longe de um qualquer abandono. Na despedida por vontade, somos nós a bater à retirada de algo que, ainda assim, sentimos como hipótese de transportar para sempre. A forma como se olha uma última vez para o lugar que estamos a deixar, não definirá o estado emocional que temos presente pela saída mas determina, certamente, a forma como o vamos carregar no futuro. Ainda que o queiramos esquecer à força, obrigar ao fim que merece, um tudo magoado ou um tanto de partido. Fechar os olhos não chega.

Não há qualquer drama em mudar para melhor, costuma dizer-se de forma apressada. Tudo depende da história anterior, sobretudo daquela que se fez no pretérito imperfeito. Os rapazes tailandeses, salvos pela ciência do milagre, têm nome e memória e bem mais do que uma história para contar. Contar-se-ão pelos dedos os pesadelos a sério, já bem bosquejados pela presença dos limites, e somam-se agora os sonhos a que têm direito com vantagem agravada. Mais do que o documentário que se monta ou o filme de ficção que se antecipa e inspira em forma-novelo, mais do que os livros que se escrevem, já e agora, há gente que merece muitíssimo o momento de ser deixada em paz e viva.

É nesta altura que se impõe um instante de luto pelo que não aconteceu e o recatado júbilo, conciso, pelo último olhar antes do início do salvamento, a derradeira visão da escuridão que os agarrou juntos, como tábuas pregadas a ar rarefeito, por tantos dias. Impõe-se um derradeiro olhar, largo. Ninguém pode fechar os olhos para esquecer o terror no momento de um fim.

Faltavam quatro programas para o fim do "Late night" de David Letterman na CBS, uma vida marcada por 33 anos de "talk shows" quase diários, ultrapassada que estava a marca de longevidade do seu mentor e predecessor Johnny Carson. Nessa noite, a 14 de Maio de 2015, Tom Waits entra em palco para render a Letterman uma homenagem de despedida através de um tema inédito: "Esta é para ti, Dave", segredou na introdução antes de se entregar a "Take one last look". A canção, feita fato à medida, não é só de ocasião. A exigência do último olhar diz-nos muito sobre a precisão da imagem e o valor da memória, sobre a exigência que devemos impor aos outros no respeito da nossa partida. Na beleza ou atrocidade romântica de uma despedida, será mais fácil convocar alguma paz que permaneça como um lullaby de sobrevivência. O refrão pode ler-se no título.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

MÚSICO E ADVOGADO

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