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quinta-feira, 12 de julho de 2018

Trumpestade em Bruxelas

Trumpestade em Bruxelas

A generalidade do “populismo” ocidental – incluindo o de Donald Trump – associa a globalização em que vivemos a uma elite separada da realidade, e pensa que o remédio está em voltar a um mítico realismo em que cada um cuida de si.

Uma vasta plêiade de comentaristas que foram até hoje tidos como porta-vozes do establishment pró-Atlântico (veja-se a capa do Economist de 07/07) vinha há já várias semanas a assinalar com imensa preocupação a cimeira de Julho em Bruxelas da “Organização do Atlântico Norte”, pelos riscos de esta levar ao fim das relações transatlânticas tais como as conhecemos até hoje.

A cimeira começou com um pequeno-almoço do presidente norte-americano com o secretário-geral da organização, em que através das imagens difundidas pela comunicação social pudemos ver um dos mais contundentes mas certeiros comentários a que eu já assisti na vida:

… tenho a dizer que acho muito triste quando a Alemanha faz um enorme negócio de petróleo e gás com a Rússia, quando era suposto que estivesse a conter a Rússia, e a Alemanha fica a pagar todos os anos muitos biliões de dólares à Rússia, e portanto nós estamos a proteger a Alemanha, nós estamos a proteger a França, nós estamos a proteger todos estes países, e vários entre eles resolvem fazer um gasoduto com a Rússia (…)

… E eu penso que isto é muito inapropriado, que um antigo chanceler da Alemanha [Gerhard Schröder] seja o presidente da companhia do gasoduto que fornece o gás, e que fará com que a Alemanha venha a depender em 70% do gás natural russo. Por isso diga-me, acha isto aceitável? Eu tenho protestado contra isto desde que entrei em funções e acho que isto nunca deveria ter sido permitido, porque a Alemanha fica completamente sob controlo russo. Acho que temos de falar à Alemanha disto.

… Ainda por cima, a Alemanha paga um pouco mais de 1%, enquanto os EUA pagam 4.2% de um PIB muito maior. Também acho isto inaceitável!”

Estamos naturalmente perante uma lógica de discurso directo despido de eufemismos e circunvalações a que a as elites político-burocráticas não estavam de forma alguma habituadas, mas que exprime de forma clara o que pensam muitos norte-americanos e europeus da situação em que hoje vivemos.

Como é costume, não faltaram as críticas ao vocabulário curto e aos pontapés na sintaxe e na gramática do presidente norte-americano, acima de tudo porque não foi possível às nossas elites rebater a essência das palavras de Trump.

A oposição a Trump investiu todo o seu capital na acusação do conluio de Trump com Putin e fica por isso desarmada quando este põe a nu o conluio dessa mesma oposição com a Rússia.

  1. O agudizar da crise

A reconstrução da Europa pelo plano Marshall e pelas instituições europeias que dele surgiram, o sistema político e de defesa que permitiu essa reconstrução, realidades que estão quase a assinalar sete décadas, estão em tensão crescente há muitos anos.

Se, no início, a parte norte americana compreendeu plenamente o esforço feito, com o passar do tempo foi cada vez menos entendendo que o esforço de defesa e as principais responsabilidades de manutenção do sistema ficassem a cargo dos EUA, enquanto a Europa aproveitava as condições para gerir uma política diplomática e comercial apenas orientada pelos seus interesses.

Do lado europeu, houve sempre a tendência para minimizar o significado do esforço americano; porque o plano Marshall desenvolvia produção americana e habituava os europeus à ‘manteiga de amendoim’, porque o complexo militar-industrial assegurava o crescimento económico americano; porque a consagração do dólar como moeda internacional traz grandes vantagens ao seu emissor; porque talvez os vizinhos russos não fossem assim tão maus; etc.

Tirando a “manteiga de amendoim”, ou seja, a minimização da importância do plano Marshall, há alguma verdade no que se diz na Europa, havendo naturalmente espaço para se encontrarem equilíbrios.

A queda da cortina de ferro veio encorajar os que pensam que o sistema transatlântico económico e de segurança deixou de fazer sentido, se não se desse o caso de com Putin, a Rússia ter voltado à sua vocação imperial, de o Jihadismo querer acabar com tudo o que o Ocidente representa e de, finalmente, a China se ter tornado num colosso mundial a que só é possível de responder no quadro transatlântico.

A emergência da Alemanha reunificada como centro incontestado da “Nova Europa” colocou no entanto novos desafios que exacerbaram as divergências que vinham do passado. Tornando-se a principal herdeira do ‘consenso de Washington’ dos anos setenta, a doutrina alemã do “ordoliberalismo” recuperou o mercantilismo europeu do século XVIII.

Nada ilustrou melhor esse facto que a crise ucraniana provocada por uma iniciativa comercial europeia de inspiração alemã que oferecia aos ucranianos um acesso praticamente livre ao mercado europeu.

Para a Rússia, tratava-se de uma provocação, de uma disputa a um território que ela considerava estar no seu espaço de influência e, claro, quando os ucranianos se revoltaram contra o diktat de Putin, ele nada mais viu do que uma conspiração ocidental, e reagiu em consequência.

A Alemanha (e aliás as instituições europeias e transatlânticas) não percebeu nada do que deveria ser óbvio e ficou totalmente surpreendida com a reacção russa. Pior, apesar de ter aceite algumas sanções, não pôs em causa negócios como os petrolíferos para sustentar a sua defesa.

Tal como Donald Trump diz, a única coisa que impede o avanço russo são as muitas divisões americanas estacionadas na Europa (na Alemanha, na Polónia e no Báltico), sendo inaceitável que a Alemanha faça negócios com o adversário e mantenha as suas forças armadas em estado de quase inoperacionalidade.

  1. O que está em jogo?

A generalidade do “populismo” ocidental – incluindo o de Donald Trump – associa a globalização em que vivemos a uma elite separada da realidade, e pensa que o remédio está em voltar a um mítico realismo em que cada um cuida de si.

Nesta perspectiva, não se trata de reequilibrar a aliança atlântica, ou de reformar a união europeia, mas acabar com ambas. Nada poderá satisfazer mais todos os inimigos do Ocidente e dos seus valores e revelar-se mais destrutivo para todos nós, incluindo os EUA, do que a materialização desta perspectiva.

Quem por outro lado pretende defender o “status quo” a todo o custo, organizações europeias e transatlânticas não reformadas, está a laborar num erro de consequências equivalentes, porque a deriva das nossas instituições as torna incapazes de responder aos desafios que temos perante nós.

Penso por isso que estamos a andar no fio da navalha, e que precisamos de quem seja capaz de nos dirigir para reformas profundas sem perder de vista a razão de ser dos valores e princípios que nos devem unir. Precisamos por isso de aproveitar esta “trumpestade” para repensar profundamente as instituições que nos governam.

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