por estatuadesal
(Dieter Dellinger, 15/11/2018)
Os juízes e procuradores alemães não são tão raivosos como os portugueses e são sem dúvida respeitadores da lei, desde que não colida com o seu elevado sentido da justiça no sentido ético e humano. A própria lei alemã exige humanidade em todos os processos e condenações.
Digo isto a respeito do caso do português Alfredo Saraiva que assassinou um o turco e foi ilibado e relatado pela revista “Der Spiegel”
O Alfredo era um pobre português de uma aldeia do Norte que emigrou há anos para a Alemanha e aí exerceu várias profissões e acabou por tirar um curso de cozinha, conseguindo abrir em Hamburgo um pequeníssimo restaurante no qual ele era a única pessoa a trabalhar, fazendo os cozinhados, servindo à mesa e lavando a loiça, etc.
Pois, Alfredo, pai de cinco filhas, andou durante anos a ser chantageado pelo turco conhecido por "çi çi" que via no restaurante com uma só pessoa o local ideal para extorquir dinheiro sob ameaça.
Começou por pedir um empréstimo de 500 euros e depois disse que era para o proteger e todos os meses ia pedindo mais até chegar aos 2 mil euros.
Um dia quis cinco mil euros e Alfredo já lhe tinha dado mais de 25 mil e disse-lhe para esperar até fechar o restaurante. Uma vez fechado disse-lhe que não lhe dava porque não tinha e o turco ameaçou matar a sua filha mais velha de 18 anos e depois acrescentou “porque não pões as tuas filhas a trabalhar, a mais velha pode dar muito”, referindo-se naturalmente à prostituição. Alfredo enfureceu-se e disse-lhe para se pôr na rua, o turco atirou-se ao Alfredo e rolaram pelo chão em luta até que Alfredo sentiu uma pistola no bolso do turco e tirou-a, disparando à queima roupa para a cabeça. O homem morreu imediatamente.
Alfredo, sem saber o que fazer, lembrou-se de fazer um buraco profundo no pequeno quintal das traseiras do restaurante para onde atirou o turco com a cara virada para baixo e tapou com terra e cimento que tinha lá, pois Alfredo tinha trabalhado nas obras e fazia todas as reparações no restaurante, tendo mesmo construído com as suas mãos os lavabos.
O turco, que andava por vezes acompanhado por um grupo, tinha cadastro, e os amigos também, por assalto em pequenas lojas e chantagem, etc.
Alfredo acabou por ser levado a tribunal porque tinha contado aos comerciantes vizinhos que andava a ser chantageado e a polícia prendeu-o, mas o juiz de instrução não aplicou prisão preventiva apesar de ser estrangeiro e poder fugir. Também não relatou o caso para os jornais, dado que isso podia produzir uma ação de vingança da parte dos comparsas do turco.
Levado recentemente a tribunal e, mesmo sem um advogado caro, o juiz ilibou o Alfredo, considerando que atuou em legítima defesa e perdoou a profanação e enterro ilegal do cadáver que na Alemanha são crimes como em quase todos os países. Todavia, o Alfredo tem uma vida de terror porque os turcos familiares do çi çi juraram matá-lo. Não o fizeram porque a polícia alemã tem uma lista de todas as pessoas da família e gang do turco pelo que iam logo investiga-los.
Este é um dos muitos casos em que a magistratura preferiu o justo, de acordo com a lei.
Outro foi o do ex-presidente alemão que tinha sido presidente de uma região e nessa altura construiu uma vivenda que teria custado mais do que aquilo que os seus honorários permitiam e não tinha contraído nenhum empréstimo bancário. O ex-presidente foi acusado por inimigos políticos e levado a tribunal, defendendo-se com um empréstimo de um amigo, um conhecido cineasta alemão, que comprovadamente era seu amigo de infância.
Os juízes alemães não condenaram o ex-presidente porque ao examinarem a atividade do político como presidente regional não encontraram nenhum indício claro de pagamento de luvas, apesar da acusação dizer que luvas podem ser dadas por todas as atividades de um governo regional sem serem registadas em contabilidades ou passarem por contas bancárias. Mesmo assim, nada foi feito contra o ex-presidente.
Outro dos casos conhecidos foi o do chanceler Kohl que durante a Guerra do Golfo vendeu a uma empresa de um amigo um vasto número de blindados especiais da reserva do exército alemão. Eram os únicos existentes no Mundo à prova de radiações, armas químicas ou bacteriológicas, etc. Como a fábrica não os podia fabricar em poucas semanas, Kohl vendeu a uma empresa intermediária de um amigo com sede na Suíça que ganhou muito dinheiro com o negócio e terá entregue parte ao chanceler Kohl.
.
Também foi a tribunal e Kohl desculpou-se com o facto de a Alemanha não ter querido entrar na guerra do Iraque como não tem entrada na maior parte das guerras americanas. Por isso, o Estado alemão não queria vender os blindados diretamente aos americanos e aos sauditas.
Toda a gente duvidou da veracidade, mas, mesmo assim, os juízes alemães ilibaram Kohl devido ao seu trabalho pela unificação alemã. O julgamento teve lugar alguns anos depois de deixar o poder e de a Alemanha se ter unido.
Por fim, uma anedota acerca da organização alemã.
Quando eu era deputado, o dr. Salgado Zenha era ministro da Justiça e um grande amigo meu, de muita política, e nada a ver com justiça e tribunais. Quando foi convidado a visitar a Alemanha pelo ministro da Justiça Federal ele pediu-me para o acompanhar, a fim de não depender só dos intérpretes alemães e ouvir o que os alemães diziam entre si.
A visita foi cronometricamente organizada. Chegámos à noite, levaram-nos ao Hotel e no dia seguinte muito cedo fomos visitar a Polícia Judiciária alemã com os seus importantes laboratórios e um enorme museu com muitas armas apreendidas e outros objetos, além de relatos de casos criminais de grande relevo. Depois fomos a uma espécie de tribunal da relação e almoçámos como o ministro alemão.
A seguir deveríamos ver uma escola da polícia e o Tribunal Constitucional para seguir depois para o Supremo Tribunal.
Salgado Zenha e a comitiva era sempre recebido à porta dos locais a visitar pelos respetivos dirigentes máximos e encaminhados para uma sala onde se fazia a receção e depois a visita às instalações.
O gabinete do ministro alemão tinha planeado tudo menos uma pausa para urinar e a dada altura o Zenha disse-me: “diz a esses gajos que preciso ou precisamos todos de mijar”. Lá disse isso no carro ao chofer para comunicar pelo telefone sem fios e fomos então orientados para uma esquadra da polícia onde saímos todos dos carros para descarregar a bexiga sob grande admiração dos polícias que viram ali de repente o seu ministro da Justiça também a caminho dos urinóis.
Aliviados, seguimos para mais umas visitas e fomos jantar com o Willy Brand e o líder parlamentar do SPD com quem eu tinha estado muitas vezes em Portugal a mostrar o processo revolucionário em curso.
Sem comentários:
Enviar um comentário