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sábado, 29 de dezembro de 2018

“A sociedade vai-se movendo para extremos”

Entrevista com o Director-Executivo da Amnistia Internacional Portugal, Pedro Neto.

Inquietudes em 2019

Para o responsável pela Amnistia Internacional em Portugal, “a narrativa de ódio utilizada” no Brasil “foi discriminadora para certos grupos mais vulneráveis da sociedade”. Pedro Neto está preocupado com “este discurso” que “também já chegou a Portugal“

Jornal Tornado: Como responsável pela Amnistia Internacional Portugal, que acontecimentos elege como os mais preocupantes no ano que acaba?

Pedro Neto: A nível internacional, destacaria o ano eleitoral no Brasil como o marco determinante daquilo que pode ser o futuro dos próximos anos. O que acontece no Brasil também nos afecta a nós, em Portugal, e dá o mote àquilo que já tem vindo a acontecer no mundo: a mentira como ferramenta eleitoral. E como ferramenta para veicular ideias que não são de todo coincidentes com a defesa dos Direitos Humanos e com o mundo onde haja espaço para todas as pessoas. Já vimos que tanto a campanha eleitoral que acabou por eleger Donald Trump, e a que acabou por eleger Jair Bolsonaro, decorreram com recurso à manipulação, à mentira mediática, ao engano das pessoas e ao seu enviesamento para votarem numa determinada direcção. A narrativa de ódio utilizada foi discriminadora para certos grupos mais vulneráveis da sociedade. E registo que este discurso também já chegou a Portugal com tentativas e ensaios por parte de algumas pessoas.

Preocupa-me bastante que os cidadãos não saibam distinguir a mentira da verdade e assim caiamos na tentação do medo, da divisão e da exclusão”»

Pedro Neto

E na sua óptica é motivo de preocupação?

Sim, preocupa-me bastante que os cidadãos não saibam distinguir a mentira da verdade e assim caiamos na tentação do medo, da divisão e da exclusão. E este é um dos grande males do século XXI, que acaba por afectar essencialmente os grupos mais vulneráveis: as mulheres, os refugiados, os migrantes, as pessoas com deficiência, que têm mais dificuldade no acesso àquilo que são os direitos fundamentais e o acesso a tudo o que é essencial para terem uma vida condigna como está plasmado na declaração universal dos direitos humanos.

E as suas preocupações individuais coincidem com as organizações defensoras das organizações dos direitos humanos?

As organizações da sociedade civil, que defendem os direitos humanos, também já estão a ser atacadas. Houve episódios em que algumas pessoas instrumentalizaram ONG e outras associações também para darem voz ao histerismo, o que também é uma forma de discurso de ódio quando ele é insultuoso. Mesmo assim, nada comparado a outros países como na Turquia, onde a minha colega, a directora da Amnistia Internacional e o presidente estiveram presos. Neste momento, os dirigentes da AI do Nepal estão a ser perseguidos e discriminados na realização do seu trabalho. Isto para dizer que não só a Amnistia, mas muitas outras organizações e defensores dos direitos humanos e do ambiente são perseguidos apenas por fazerem o seu trabalho e por defenderem direitos humanos e ambientais de forma absolutamente correcta, legal, idónea e sem gritaria, e estes são os que me preocupam. A sociedade vai-se movendo para extremos, e precisamos de prevenir estes movimentos: tanto a extrema-direita como a extrema-esquerda são campos ideológicos onde não cabem os direitos humanos. Porque na moderação cabem todas as ideologias – e os direitos humanos.

“Tanto a campanha eleitoral que acabou por eleger Donald Trump, e a que acabou por eleger Jair Bolsonaro, decorreram com recurso à manipulação, à mentira mediática, ao engano das pessoas (…)”

Não nos podemos esquecer que há menos de cem anos, o mundo já viu em que resultam os extremismos: em conflitos mundiais e em desgraças humanitárias. Foi depois da II Guerra Mundial, num grito “já basta” às atrocidades, que foi fundada as Nações Unidas e escrita a Declaração Universal dos Direitos humanos na forma como a conhecemos hoje. A História repete-se e temos de estar atentos para que o pior que aconteceu no século XX não volte a acontecer no século XXI.

Racismo: muito para trabalhar

Em termos de violação de Direitos Humanos, direcciona antecipadamente os seus alertas para quem legisla e governa ou para a sociedade civil?

Os direitos humanos são universais e se todos nós cumprirmos os nossos deveres para com os outros, estes terão os seus direitos humanos garantidos, assim como eu também. Há um trabalho recíproco de direitos e deveres, cada um no seu papel. Um governante ou os partidos da oposição têm um papel essencial no funcionamento da Democracia, do mesmo modo que a sociedade civil, sejam professores, alunos ou profissionais da saúde… todas as áreas profissionais têm direitos e especificidades para trabalhar os direitos humanos, que são um assunto de toda a gente e de todos os dias. Depois há um momento em que todos temos um trabalho importantíssimo a fazer, que é quando há eleições: votar em consciência nas organizações e nos partidos políticos que defendem direitos humanos e nunca em extremos que os colocam em causa e os querem destruir. Todos temos uma palavra a dizer, no exercício da democracia através do voto, e depois, de forma particular, sejamos governos, sociedade civil ou seres individuais.


“A sociedade vai-se movendo para extremos, e precisamos de prevenir estes movimentos: tanto a extrema-direita como a extrema-esquerda são campos ideológicos onde não cabem os direitos humanos”


No entanto, a legislação nem sempre é suficiente para defender direitos humanos. São públicos episódios de racismo em que a lei revelou-se …

… Governo é o primeiro responsável por implementar e fazer cumprir os direitos humanos num país. Em relação a Portugal, em muitas áreas, temos boa legislação, com o país a subscrever todos os tratados e convenções de direitos humanos, mas há uma área, por exemplo, a do racismo, onde há muito para trabalhar. Ainda recordo, dois acontecimentos de 2018, com dois acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, em que a legislação e as convenções de Istambul sobre os direitos das Mulheres, por não estarem bem transpostas para a legislação portuguesa, acabaram por descriminar a mulher: num caso de violência doméstica, noutro em que uma rapariga inconsciente foi violada e não pode resistir, e isso serviu como atenuante para o crime de violação. A Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Dr.ª Rosa Monteiro, já declarou publicamente que iria trabalhar para que legislação fosse actualizada, e isto é um trabalho contínuo, porque cabe aos Governos implementar e fazer cumprir os direitos humanos num País.

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