Translate

sábado, 5 de janeiro de 2019

Entre o bolsonarismo troglodita e a tecnicidade bolsonara

Ladrões de Bicicletas


Posted: 04 Jan 2019 11:25 AM PST

Jair Bolsonaro no poder tem a vantagem de tornar claro ao mundo o que pensa a escola económica dominante sobre diversos problemas. Mas tem a desvantagem de, na sua brutal clareza, enobrecer os mesmos raciocínios, embora expostos de forma civilizada e com uma aparência técnica.

Bolsonaro parece aqui não pensar muito. Mas a sua versão simplista e pouco elaborada sintetiza onde quer que a força do rolo compressor seja usada com mais violência. Em Portugal, conhece-se essa situação, vivida no período da intervenção da troica, com um governo que a apoiava (Passos Coelho/Paulo Portas). Aliás, por momentos Jair raia o discurso feito por Passos Coelho. Ou de quem está à frente do patronato português e que defende as mesmas ideiashá muito.
Mas sabe-se lá porquê, a versão expurgada de qualquer subtileza - que revela ao mundo a visão orgulhosa e bruta dos objectivos das politicas económicas - parece bem mais reaccionária, brutal e perigosa, para não dizer fascista, do que a mesma ideia articuladamente científica. E da mesma forma, embora de forma simétrica, faz parecer aceitável, defensável e até tecnicamente louvável as mesmas ideias brutais se forem travestidas de argumentos técnicos, a ponto de serem repetíveis por comentadores televisivos.
Esta diferente percepção da mesma ideia, consoante quem a apresente, não evita contudo que o resultado final da mesma política - defendida com brutalidade ou com brilhantismo, inteligência e tecnicidade - seja o mesmíssimo. De outra forma, não poderia deixar de ser. E nem se pretende outra coisa.
E no entanto, o mesmo rolo compressor tem sido lançado desde há muito em Portugal sem que ninguém se assuste. Foi feito com mais violência desde 2003 (Governo Durão Barroso), em 2008/09 e 2010 (Governo Sócrates), em 2012 (Governo Passos Coelho/Paulo Portas) e mesmo desde 2015 (Governo António Costa), já que se manteve quase intacta a armadura criada em 2012, responsável por uma desvalorização das retribuições salariais e, a partir de 2019, com um pacote laboral ainda em discussão parlamentar, fruto de mais um acordo político sem a CGTP  que, visando combater a precariedade, nalguns casos vai agravá-la.

No Brasil, o objetivo é acabar com o artigo 7º da Constituição, que enumera um conjunto vasto de direitos dos trabalhadores, além de outros que visam melhorar a sua condição social.
É o caso da protecção contra o despedimento sem justa causa, da garantia de um seguro em caso de despedimento, dos descontos para a Previdência, da existência de um salário mínimo nacional, da existência de um salário proporcional à complexidade do trabalho, da garantia de que os salários não podem descer, do pagamento de um 13º salário, do pagamento do trabalho nocturno acima do diurno (proibido a menos de 16 anos, salvo no caso de aprendiz que pode baixar aos 14 anos), do próprio pagamento do salário (contra a retenção pelo patronato), da garantia de que a jornada de trabalho seja de 8 horas diárias, de 6 horas em turnos ininterruptos e de 44 horas semanais, do repouso semanal, da remuneração do trabalho extraordinário em pelo menos 50% da remuneração normal; do gozo de férias; da protecção da trabalhadora grávida; da redução do risco no trabalho e do pagamento adicional para actividades penosas; pelo direito a aposentadoria; pelo reconhecimentoda contratação colectiva; pela protecção contra a automação; pela garantia da existência de seguros contra os acidentes no trabalho; da garantia contra a discriminação salarial por sexo, idade, cor ou estado civil. 
Na campanha eleitoral, Jair Bolsonaro foi muito comedido. O seu programa apenas tinha cinco linhas sobre a reforma trabalhista, embora visando ir mais longe que a legislação aprovada no Senado em julho de 2017. Bolsonaro prometeu, aliás, que não iria contra o conteúdo do artigo 7º da Constituição, porque apenas uma assembleia constituinte o poderia fazer. Mas foi repetindo que os brasileiros têm que optar: "O que o empresariado tem dito pra mim, e eu concordo, é o seguinte: o trabalhador vai ter que viver esse dia: menos direitos e emprego, ou todos os direitos e desemprego”.
Ou seja, o velho mantra que cá se repete de que existe um mercado de trabalho segmentado por causa da rigidez laboral. Em Portugal, ninguém fala de direitos que prejudicam o emprego. Fala-se de rigidez que - se é rigidez - é preciso flexibilizar. Soa mais técnico e menos ideológico, não é? 

Aliás, Bolsonaro e o seu ministro Paulo Guedes defenderam já a existência de um carteira profissional alternativa,"verde e amarela" por oposição à "azul-escura", como forma de reduzir o desemprego. Essa nova carteira teria novas regras para o trabalho flexibilizado: não haveria encargos trabalhistas e a legislação aplicada seria minimizada. Como dizia Paulo Guedes, caberia ao jovem optar por qual regime de trabalho queria se reger: "Porta da esquerda tem sindicato, legislação trabalhista para proteger e encargos. Porta da direita tem contas individuais e não mistura assistência com Previdência". E assim se mete um um pé-de-cabra na Constituição e no regime de protecão social. Liberdade de escolha que se transformará rapidamente em chantagem: "Se não for verde e amarelo, não te dou emprego..."
Depois de ganhar as eleições, Bolsonaro foi mais claro, falando da necessidade de que a legislação trabalhista teria "que se aproximar da informalidade" para que mais empregos possam ser gerados. Mais uma vez, a questão da segmentação laboral prejudicada pela legislação. E sempre à pala da ideia de mais emprego, quando o que se pretende é mudar o enprego que já existe.
Mas em Portugal, esse mesmo tipo de contrato "verde e amarelo" foi defendido pelo actual ministro das Finanças - mesmo quando estava à frente dos economistas que apoiaram o PS - ao pugnar pela necessidade de um contrato único de trabalho, que - claro está - resultaria numa redução de garantias dos actuais contratos permanentes. O tema acabaria por cair antes mesmo das eleições de 2015. Mas caso fosse para a frente, seria outra forma - como se acusou à esquerda do PS - de aproximar essas contratos da informalidade dos que se pretendia combater.    
Bolsonaro critica a actividade de inspecção do Estado (Ministério Público do Trabalho), prometendo atacar a possibilidade de "uma minoria actuante"(os sindicatos) prejudicar "quem produz" (as empresas e o patronato). Ou seja, precisamente atacando a própria ideia-pilar de que o Direito Laboral deve representar a função de equilíbrio de uma relação no terreno que é, por natureza, desigual.
Na verdade, Bolsonaro nada inventa. Muito do que ele ataca foi já levado a cabo em Portugal por legislação sucessiva, aprovada tanto à direita como pelo Partido Socialista.
Foi o caso do Código do Trabalho e sucessivas alterações que - na prática - diabolizam o papel dos sindicalistas. Foi o caso da desarticulação da contratação colectiva, fomentando a atomização das relações laborais, com vista a aplicar todas as necessárias alterações aos horários de trabalho, de preferência sem pagar mais por isso (adaptabilidade e banco de horas). Foi o caso do esvaziamento de um papel interventivo da inspecção do Trabalho, ao reduzir as obrigações da empresa de comunicação prévia aos serviços de fiscalização (caso do trabalho temporário e mais rcentemente dos horários de trabalho, dificultando o controlo do trabalho suplementar). Foi o caso da aprovação de leis sem a devida concertação com os serviços de inspecção, que se confrontam com a ineficácia das leis aprovadas (caso dos falsos recibos-verdes, engrossando um debate nacional com mais de 30 anos). Foi o caso mesmo da desprotecção ao desempregado ilegalmente, em que o PS forçou em 2008/9 que os trabalhadors tivessem de entregar à empresa a compensação por despedimento caso impugnassem o despedimento em tribunal.
E os exemplos poderiam prolongar-se ao infinito.
Conclusão: No fundo, parece haver uma fonte única de pensamento que se estende pelo mundo que sustenta a ideia de que mais direitos prejudicam o emprego. Como se a escravatura tivesse sido um exemplo de pleno-emprego. Nesse debate, Bolsonaro é apenas mais um político que a está a aplicar. Com pouca elegância e brutalidade, certo, mas com eficácia de qualquer pessoa que se apresenta como sendo mais inteligente. E progressista.

Sem comentários:

Enviar um comentário