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sábado, 6 de abril de 2019

As famílias infelizes

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 06/04/2019)

Miguel Sousa Tavares

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Ao longo da vida e para se sustentar, uma pessoa passa às vezes por situações de que não guarda boas memórias, mas, mesmo assim, proveitosas experiências. Sucedeu a mim, jovem imberbe acabado de licenciar, quando me vi nomeado adjunto do gabinete de um ministro. Nunca tinha visto o ministro na minha vida, não pertencia ao partido dele nem a nenhum outro e, de facto, era o único membro do seu gabinete sem relações partidárias ou pessoais com o ministro: fui lá parar porque alguém que me tinha visto trabalhar algures me recomendou ao sr. ministro, ele convidou-me e eu fui ganhar o dobro do que ganhava no emprego em que estava. O Ministério era o da Educação, o maior e o mais ingovernável do país — até hoje. Passei lá dois anos, desafiantes e altamente formativos em termos profissionais no início, e profundamente decepcionantes no final. A parte útil foi perceber como funcionava a máquina da Administração Pública por dentro; a parte decepcionante foi perceber como ali se aplicava como uma luva uma adaptação da Lei de Lavoisier: nada se cria, nada se transforma, tudo se arrasta para que nada avance. Como era novo demais para me adaptar, demiti-me a meio do mandato — do cargo e do quadro da função pública, para que fora nomeado a título definitivo, apenas um mês antes.

Hoje, quando oiço as conversas de rua sobre os ‘tachos’ dos membros dos gabinetes governamentais, sei que, não se tratando de quem é tão novo como eu era e foi ao engano como eu fui, ou alguém que estava desempregado, ou que não sabe fazer mais nada, ou porque, de facto, é a mulher, a filha ou a sobrinha, aquilo não é ‘tacho’ que se recomende. Mas alguém tem de o fazer porque os governantes precisam de um gabinete para governar. Não há “ministers” sem um Sir Humphrey e um Bernard —– aqui ou na circunspecta Inglaterra. E fico sempre espantado quando assisto na televisão às cerimónias de posse de novos membros do Governo e constato a aparente alegria e entusiasmo dos novos membros empossados, rodeados de amigos, familiares e colegas, muito felizes, entre beijos, abraços e palmadas nas costas. Que celebram eles, que não um voto de sacrifício e maledicência pública garantidos, a troco de 4 ou 5 mil euros brutos por mês? Já o disse e repito com toda a sinceridade: agradeço que haja alguém que me queira governar, porque eu, por mim, não teria a mais pequena vontade de o fazer e conheço muito poucas actividades menos compensadoras do que governar Portugal. Pegando na célebre frase inicial do “Anna Karenina”, as nossas famílias governantes, funcionando em círculo fechado, estão condenadas por natureza a serem infelizes. Talvez cada uma à sua maneira, mas todas sempre infelizes.

E o prémio da infelicidade da semana nesta matéria vai para Cavaco Silva, que jurou que nos seus três governos não tinha havido quaisquer relações familiares dentro dos gabinetes. Pouca sorte a dele! Logo haviam de desenterrar o fantasma de “O Independente”, a recordar dezenas delas, até as mais expostas, como os secretários de Estado Marques Mendes e Álvaro Amaro a nomearem as mulheres um do outro para os respectivos gabinetes!

Curioso é que segundo a “linha vermelha ética” traçada por António Costa e que levou à demissão do secretário de Estado do Ambiente do actual Governo — não haver familiares nomeados directamente por um membro do Governo — tal situação escaparia a qualquer censura. Mas o critério é de justiça duvidosa e está longe de resolver o problema: nesse gabinete do ministro da Educação em que trabalhei, a sua secretária pessoal era a mulher dele. Aquilo fazia-me alguma confusão, mas, apesar de tudo acho mais aceitável que um membro do Governo escolha a sua mulher para um lugar de secretária, que é de estrita confiança pessoal, do que se faça trocas de mulheres ou de filhos ou de primos com outros membros do Governo: aí é que já há um indisfarçável cheiro a distribuição de tachos entre famílias.

Entre os 50 casos familiares detectados para já nos gabinetes governamentais (e mais hão-de fatalmente aparecer...), deve haver de tudo um pouco. Favores familiares e favores partidários. Não sei se haverá lei ou regulamento, como pretende António Costa, que possa pôr ordem nisto. Sobretudo, quando, como cristalinamente explicou Carlos César (que brilhante ideia escolherem-no para porta-voz da família socialista!), “há famílias que têm uma especial vocação para a política”. E que desde as juventudes partidárias foram educadas a pensar que o partido era uma extensão do Estado e a família e o partido se confundem num só. Mas não se pense que isto se passa apenas a nível do estado-maior dos partidos, do Estado central e do Governo do país: olhados de perto, os governos regionais e as autarquias locais estão atulhados de familiares, companheiros e camaradas de partido, nos governos locais, nas empresas regionais e municipais. E, quando não estão nos lugares, estão nas obras onde deixam assinatura: as piscinas, os centros de dia, os polidesportivos, os campos sintéticos, os centros de congressos, os monumentos das rotundas feitos pelo primo escultor da mulher do presidente ou pela cunhada do vereador. Há muito pouca gente disponível no país profundo...

Sempre foi assim e sempre será assim. O grande erro de António Costa foi no Conselho de Ministros. Ele diz e repete que isso já vinha de trás e que só ao fim de três anos é que levantaram o problema. É verdade que sim, é verdade que Mariana Vieira da Silva já se sentava no Conselho de Ministros como secretária de Estado. Mas quando ele a promoveu a ministra, a coisa tornou-se mais visível e aberrante: marido e mulher, pai e filha, juntos no Conselho de Ministros? Não, francamente, é de terceiro mundo! Que fazem o marido e a mulher, o pai e a filha quando estão em desacordo: enfrentam-se à vista dos outros ministros, enfrentam-se em casa, abafam as divergências? Foi esse absurdo erro de casting que fez com que toda a gente, olhando para cima, começasse então a olhar para baixo e fosse puxando a teia até chegar aos 50 casos de família. Foi um claro erro de cegueira do poder, de quem não consegue ver o que entra pelos olhos adentro.

E tanto ruído inútil, tanta conversa que leva a lado nenhum, tanta energia gasta a discutir coisas que deveriam ser evidentes por si, afastam-nos daquilo que é verdadeiramente importante. De vez em quando há alguém que nos quer chamar a atenção, mas ninguém ouve: estamos todos entretidos com o vazio das coisas.

(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)

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