(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 09/04/2019)
Daniel Oliveira
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Quase todo o debate sobre as conclusões da Comissão parlamentar para a Transparência se fez em torno dos deputados advogados. Apesar de concordar com muitas das críticas ao recuo que foi feito, não deixo de acompanhar a polémica com pouco entusiasmo. Quando todos sabemos que tanta lei da República é desenhada nos maiores escritórios de advogados – olhe-se para o caso da energia – e que a presença de Pedro Siza Vieira no Governo vale mais do que uma dezena de advogados no Parlamento, é um desperdício a tinta que este debate fez correr.
Houve um assunto que, pelo seu valor simbólico e prático, me interessou mais: a regulamentação do lóbi. A crítica que tem sido feita é que a proposta está coxa. Nem sequer obriga os lobistas a declarar quais são os seus clientes. A crítica é justa. Um lobista cruza interesses e é provável que, no contacto com um deputado, este não saiba que cliente está ele a representar. Mas mesmo declarando quem são os seus clientes será, pelo menos com as empresas de lóbi de maior dimensão, virtualmente impossível saber que chapéu usa o lobista quando contacta com o eleito.
Aceitar que alguém pode receber dinheiro para facilitar o contacto com um deputado é uma forma de legalizar o tráfico de influências e de privatizar a democracia. Se uma empresa quer falar com um deputado faz como qualquer cidadão ou associação: pede-lhe uma audiência
A minha crítica é bem mais profunda do que isto. Não acho que a regulamentação seja coxa, acho que tem uma perna a mais. Não há qualquer razão para haver lobistas dentro do Parlamento. Nenhuma. Regulamentar a atividade de lóbi político é regulamentar a compra de acesso preferencial dos eleitores aos eleitos. Como se precisássemos de um canal privado para chegar ao que é nosso por direito. Legitima a desigualdade nesse acesso.
Há duas formas de os cidadãos falarem com os deputados para tentarem influenciar as suas decisões: através de associações ou por via direta. As associações profissionais, empresariais, sindicais ou de qualquer outra natureza são os grupos de lóbi legítimos. São transparentes na representação dos seus associados, não dependem de recursos financeiros e são a forma normal da sociedade civil se organizar.
Para aqueles que não estão associados, existe o atendimento direto. Os grupos parlamentares recebem dezenas de cidadãos por dia. Não os suficientes. Por isso devem ser criados gabinetes nos círculos eleitorais (alguns deputados já os têm) que tenham essa função. Também é para isso que existe um dia semanal para o contacto dos deputados com os cidadãos. Custa dinheiro e muitos vão dizer que é para mais tachos. Mas a democracia que não se privatiza tem custos. Muito mais baixos do que a fatura do tráfico de influências, seja ela legal ou ilegal.
Aquilo a que assistimos é a privatização da sociedade civil. Aliás, cada vez mais este termo é usado para falar de empresas — e não do associativismo (que também pode ser empresarial). E essa privatização está lentamente a ser transferida para a democracia representativa, profissionalizando e empresarializando a relação dos cidadãos com aqueles que elegem.
A experiência do Parlamento Europeu é paradigmática de tudo o que não deveria acontecer em democracia. Os lobistas são os porteiros do poder em Bruxelas, disponíveis para quem queira pagar pela influência. Mesmo para serem ouvidas, algumas representações menos abonadas têm de recorrer a eles. Mas são as grandes empresas que, gastando fortunas nestes serviços, conseguem um contacto privilegiado, mais eficaz e mais persuasor com os que nos deviam representar a todos.
Pois a minha posição sobre o lóbi é exatamente a oposta à que parece fazer o seu caminho. Não se deve regulamentar o lóbi, deve-se proibir o lóbi. Regulamentar uma atividade comercial que consiste em receber dinheiro para facilitar o contacto com um deputado é legalizar o tráfico de influências e a desigualdade no acesso ao poder político. É privatizar a democracia.
Se uma empresa quer falar com um deputado faz como qualquer cidadão ou associação: pede-lhe uma audiência. Dirão que há sempre as conversas informais. Como é evidente, a regulamentação do lóbi não acabará com elas. A política, como todas as atividades humanas, tem sempre uma parte informal. Quanto a isso, só podemos depender da ética de cada eleito.
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