(Daniel Oliveira, in Expresso, 27/07/2019)
Não é o direito à autodeterminação da identidade de género (quando não há uma correspondência entre género biológico e aquilo com que a pessoa se identifica) que está em causa no recente pedido de fiscalização de constitucionalidade por 85 deputados de direita. O que está em causa são as medidas para que se combata a discriminação na escola e se proteja quem exerce esse direito. Segundo este grupo de deputados, encabeçado por Miguel Morgado, o Estado pode garantir um direito mas não deve proteger quem o exerça. Sabendo que não há como pedir a inconstitucionalidade da promoção da tolerância e do combate à discriminação, Morgado socorreu-se de um discurso novo na direita democrática portuguesa: que isto é ideologia de género. E impô-la nas escolas é violar o dever de neutralidade política do sistema de ensino. É a versão portuguesa da “Escola Sem Família”, que permitiu que Bolsonaro transformasse a transmissão de qualquer valor de tolerância em propaganda partidária. Ao mesmo tempo que promovia o nacionalismo e a fé, claro.
Comecemos pelo básico: a ideologia de género não existe. Pelo menos no sentido que lhe dá Miguel Morgado, único que lhe permite recorrer à Constituição. Antes de chegar aos discursos de Bolsonaro, aos tuítes de Trump ou aos cartazes do PNR, a expressão surgiu em trabalhos dos estudos de género como forma de caracterizar as crenças sociais vigentes sobre o lugar da mulher e do homem na sociedade. E foi depois apropriada, ganhando o sentido inverso, por Ratzinger, para definir aqueles que contestam essas crenças. Hoje é usada por grupos de extrema-direita e por religiosos radicais. Em qualquer dos casos, não é uma autodefinição ideológica, é uma definição crítica das convicções de outros. A ideologia de género não tem ideólogos, não tem seguidores, não existe enquanto doutrina que possa caber na definição constitucional. No sentido que lhe dá Morgado, faz parte da novilíngua extremista a que parte da nossa direita parece agora querer aderir. Ainda os vamos ouvir falar de “marxismo cultural”.
A agenda económica de Miguel Morgado é bastante radical. Só que não tem eleitorado num país pobre. Vale os votos que teve a Iniciativa Liberal, com a qual o deputado do PSD tem relações muito próximas. Como explicou José Miguel Júdice na SIC, esta “guerra cultural” é mais mobilizadora para a direita. Foi por perceberem isto que muitos neoliberais abandonaram qualquer tipo de liberalismo político ou cultural e se têm aliado às correntes autoritárias de direita. No Brasil, enquanto Bolsonaro trata do circo, o seu ministro Paulo Guedes prepara a privatização de recursos naturais e de serviços públicos, começando pela Segurança Social, filet mignon dos Estados. A vantagem desta aliança é que mobiliza o povo com uma agenda política menos impopular, ao mesmo tempo que responsabiliza as minorias pela ansiedade criada pela destabilização social. De caminho, ganha músculo para pôr quem resista na ordem.
Alguns velhos militantes do PSD têm avisado que Miguel Morgado é de uma direita radical sem qualquer tradição no partido e que o usa como mero veículo para um projeto político que nunca se conseguiu afirmar autonomamente. A adoção da conversa da “ideologia de género” é um sinal claro de que está a fazer o seu caminho. Os 85 deputados que o seguiram apenas confirmam que a ausência de liderança na direita tradicional é o melhor que estes extremistas podem desejar.
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