(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 24/08/2019)
1 Trabalha-se, espera-se e sonha-se um ano inteiro pelos dias de Verão, de mar azul, águas irresistíveis, tardes indolentes na praia e noites mediterrânicas, e depois, chegados ao local do crime, levamos com a implacável ventania do Norte com o seu incansável ronco de animal enfurecido, varrendo a praia, gelando a água, expulsando-nos das noites ao ar livre. Enquanto a Europa inteira se derretia de calor, Portugal vivia o princípio de Verão mais frio e desconfortável de que guardo memória, mas que nada teve de atípico: Verões assolados pela nortada, de Caminha ao Cabo Carvoeiro, onde os alegados paraísos de praia só existem nos cartazes de promoção, é o segredo mais bem guardado do turismo português. Portugal é bom para passar todas as estações, menos o Verão.
No aguardo pela lua cheia e alguma esperança de dias e noites mediterrânicas, na contagem decrescente pela greve que anunciavam que definitivamente liquidaria de vez qualquer ilusão de férias tranquilas, fui lendo, sem grande interesse, aquilo que, sem grande empenho, se escrevia na nossa imprensa. Isto é, neste jornal ou no “Público” — ao qual agora se resume a nossa imprensa escrita diária, generalista e em papel, após a trágica decisão de liquidar o “Diário de Notícias”, de que todos os dias sinto a falta. Notavelmente desprovido de um mínimo de testerona editorial ou jornalística, o “Público” está transformado numa tribuna feminista e tão previsível e aborrecidamente correcta, nisso e em tudo o resto, que lê-lo é uma espécie de penitência ao nível dos mandamentos de qualquer credo das igrejas evangélicas. Os únicos resquícios de masculinidade (se assim lhes podemos chamar) que restam naquelas enxutas páginas, onde até os homens se esforçam por escrever como mulheres, são as infatigáveis descrições do Miguel Esteves Cardoso sobre as suas investidas gastronómicas, na vasta pátria que vai de Colares à Praia Grande, com algumas episódicas incursões à Noélia, em Cabanas de Tavira, onde ele revela o segredo para conseguir mesa em Agosto: sentar-se para almoçar às 11h30 e para jantar às 17h30. Uma alternativa de férias.
Assim, num dia o “Público” deu-me a ler um notável trabalho de investigação doméstica, cujas conclusões, pré-determinadas, consistiam em fazer-nos condoer e comover com a, até ver, incontornável fatalidade da maternidade feminina. O que as portuguesas sofrem com o parto, a depressão que lhes causa, o desconforto, o atraso de vida, as sequelas que nunca mais passam, o sacrifício, tudo aquilo que os homens nem imaginam e que, está bom de ver, não partilham, desde os nove meses de gravidez até ao fim da vida. Num país que apresenta a mais baixa taxa de natalidade da Europa e uma das mais baixas do mundo, o apelo subentendido era claro e tonitruante: “Se puderem, se forem lúcidas, não tenham filhos, pensem antes em vocês!”. Eu estou de acordo e até tenho uma solução para isto, para compensar devidamente as poucas que ainda se sacrificam em nome da continuação da espécie portuguesa, da sustentação financeira da Segurança Social e outros relevantes interesses do país. Só que, lamento, é uma solução que também se aplica aos pais, que embora não tenham andado grávidos nove meses nem tenham passado pela sala de partos, participaram toda a vida activamente na criação, educação e sustento dos seus filhos: majorar as pensões de reforma em função do número de filhos que se teve e se sustentou. Considerando que as pensões de quem está na reforma são pagas pelos impostos dos filhos dos reformados que estão no activo, com que justiça hão-de estar em pé de igualdade os que criaram e sustentaram dois, três ou mais filhos e os que não tiveram qualquer filho?
Mais complexo intelectualmente e mais original era outro artigo que o “Público” me deu a ler nos idos de Agosto. Tratava-se de explicar, com a ajuda de uma arquitecta, que Lisboa não era uma cidade “amiga das mulheres”. Sinceramente, a coisa era demasiado intelectual para a minha cabeça, sobretudo em modo de férias, e eu não retive os fundamentos de tão douta conclusão. Não percebi se tinha que ver com a calçada à portuguesa, com o percurso do 28, com as dificuldades em sair sozinha à noite, com os criminalizados piropos ou qualquer outra dificuldade que, sobretudo nestes dias e noites de Verão na cidade, o meu olhar obviamente suspeito não alcança, ao ver deslizar mulheres em todas as direcções e por todos os meios, aparentemente felizes e despreocupadas. Mas talvez sejam todas estrangeiras e não leiam o “Público”. Porém, ocorreu-me uma pergunta, certamente estúpida nos tempos que correm: e será que Lisboa é uma cidade amiga dos homens? E se alguém achar que não, quem se preocuparia com isso? Ah, que saudades do “Diário de Notícias”!
Ali, pelo menos e na sua versão semanal, o seu director, José Ferreira Fernandes, atreveu-se a escrever o que na concorrência seria garantidamente interdito: que a perseguição do #MeToo a Plácido Domingo é uma coisa abominável. Que aos 74 anos de idade, uma das maiores vozes de sempre da Ópera seja perseguido, exposto, silenciado, banido das salas e dos concertos para que fora contratado, porque sete ou oito mulheres o acusam de há trinta anos lhes ter passado a mão pelas coxas ou de se ter permitido outros avanços com elas, seja verdade ou não, é intolerável. Não se trata de consentir ou menorizar o assédio sexual, mas de ter a noção da proporção das coisas, da facilidade das acusações fora de contexto e da violência das penas, decretadas sem mais. Façam o que lhe fizerem, Plácido Domingo ficará sempre na história da música, mas as suas acusadoras não. Tenham razão ou não, nenhum ouvinte se deslocará ao teatro para, em lugar de ouvir Domingo a interpretar “La Traviata”, ouvir uma activista do #MeToo a contar os abusos de que terá sido vítima há trinta anos. Dez minutos de fama não valem uma eternidade de glória.
E um dia destes ainda teremos alguém a escrever uma biografia sobre Mozart e a revelar que ele teria o mau hábito de apalpar as empregadas de limpeza, arriscando-nos a ver Mozart banido das salas de concertos e das editoras discográficas. No seu modo de funcionamento e de execuções sumárias, o #MeToo está a tornar-se uma das mais tenebrosas polícias políticas desde a Inquisição.
2 Tenho denunciado bastas vezes o crime ambiental em curso em Alqueva, com a expansão contínua do olival intensivo e superintensivo, transformado numa monocultura que tudo absorve: água, ajudas financeiras, culturas alternativas, paisagem. Criticando a minha opinião e a de outros mais habilitados do que eu, o director do Expresso, João Viera Pereira, escrevia a 15 de Junho passado: “ Não percebo qual a vantagem de ter um Alentejo abandonado, ou apenas entregue ao sobreiro ou à azinheira, se esse Alentejo apenas serviu para o tornar uma das regiões mais pobre do país”. Obviamente que não é essa a alternativa que alguém defenda. É, sim, uma alternativa fundada num aproveitamento ecológica e agricolamente sustentável e não apenas rentável a curto prazo, determinado pela simples ambição — a qual, quando terminada por exaustão da terra, deixará um deserto à vista. Ao contrário do que J.V.P. escreveu, o olival superintensivo não representa “criação de emprego, aumento das exportações, criação de riqueza” — ou apenas representa a prazo. Não há como ver para crer, apesar de não se ser um entendido na matéria — como ele confessa não ser e eu também. Mas desafio-o a ir ver as plantações à volta de Beja e Ferreira do Alentejo, como ainda há dias voltei a fazer. Mesmo para quem não é entendido no assunto, aquilo é aterrorizador: para melhor rentabilizar o negócio, conseguiram transformar a oliveira num arbusto e o olival numa sebe. Uma sebe de milhares de milhares de hectares a perder de vista, tudo nivelado, tudo igual, sem nenhum sinal de vida ou de biodiversidade. Não se trata, como escreveu J.V.P., num tipo de argumentação sempre de fácil efeito, de “querer o Alentejo como um clube de campo para as elites das grandes cidades”. Trata-se de ir ver para perceber, à vista desarmada, que aquilo é pura ganância, sem freio e sem respeito algum pela natureza, pela paisagem e pelo futuro. Não cheira a riqueza, cheira a tragédia anunciada. Com o nosso dinheiro, com a nossa preciosa água de Alqueva.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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