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domingo, 18 de agosto de 2019

Tudo o que perdemos com a privatização da Galp

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 17/08/2019)

A cenografia inicial em torno da greve dos motoristas foi perfeita. A estratégia era simples: conseguir evitar que a greve fosse evitada; assustar o país; mostrar o Governo como uma autoridade implacável que aqueça o coração do eleitorado de direita. Tudo nesta montagem estava subordinado às eleições (até o advogado e vice-presidente do sindicato veio confirmar a regra, saltando para a cartola de um partido de circunstância). Creio que essas jogadas estão em vias de falharem.

O ATAQUE AO DIREITO À GREVE

A consequência mais duradoura e importante deste conflito, qualquer que venha a ser o seu desenvolvimento, é a banalização de um precedente grave contra o direito à greve: o efeito social foi invocado pelo Governo para impor serviços mínimos maximizados e, logo na primeira oportunidade, com menos de 100 motoristas em greve, determinou a requisição civil, mobilizando as Forças Armadas para substituir grevistas. Este tríptico legal destroça o direito de greve. Mesmo sem considerar a prévia promoção de alarmismo, medida ao milímetro pelos estrategos eleitorais, estas regras impedem as greves e mobilizam meios do Estado, desde o poder legal até à tropa, para apoiar o patronato na disputa. Há aqui uma violenta marca histórica, vinda de um partido que reclamava a tradição democrática.

Para criar este precedente e ganhar a autoridade pública de que o Governo se quer revestir, era preciso que a greve não fosse evitada e que as partes se acirrassem. Ora, se tivessem ficado fixados calendários de negociação ao longo dos últimos meses, se o pré-acordo de maio tivesse sido generoso, se o patronato não tivesse sentido desde logo que tinha a mão do Governo e se tivesse sido concluído o arrastadíssimo processo negocial com o maior sindicato do sector, cujas linhas gerais foram anunciadas na quarta-feira de noite, a querela deveria ser sido resolvida.

Para os motoristas, fartos de uma situação de vulnerabilidade, com um salário-base baixo e com pagamentos dependentes da discricionariedade patronal, era justiça elementar que se chegasse a um novo contrato coletivo. Quem trabalha no privado sabe bem como funciona este truque do salário de referência ser insignificante e ficar na mão dos subsídios vários.

PERDER ANTES DE COMEÇAR

Mas, como um dos sindicatos é representado por um vice-presidente que não é sindicalista, antes se anuncia com alguma pompa excessiva como o dono de um dos maiores escritórios de advogados do país, os motoristas entraram logo a perder na disputa da opinião pública.

Ainda para mais, e antecipando a greve, o Governo preparou a sua campanha meticulosamente. Tudo estava no seu lugar. Houve recibos de salários, bem selecionados, para serem exibidos nos telejornais: os motoristas ganham muito mesmo que ganhem pouco. Houve o anúncio da escassez, para lançar as pessoas para as filas desde uns dias antes da greve. Houve a contagem decrescente, como se se tratasse de um furacão anunciado. Houve a escalada de ministros em declarações sucessivas, mas tentando que não se note a consequência da sequência. Houve mesmo três ministros, um em cada telejornal, não fosse alguém não perceber. E todos delicados, nada de empolgamentos, tão pesarosos como o professor primário do antigamente que aplicava reguadas às crianças, todos recitaram bem o seu papel.

GASTAR AS EMOÇÕES

O país, diga-se, não se assustou por demasia e uma grande parte das bombas de combustível foi funcionando tranquilamente. Só que o plano tinha que ser cumprido. Talvez por isso, foi logo forçado em demasia: a requisição civil logo no primeiro dia foi precipitação. Ou pôr tropas a conduzir camiões passadas poucas horas. As fardas eram para ser notícia grandiosa, quando Portugal inteiro suspirasse pela autoridade de galões. Era para quando o país se declarasse nas últimas (curiosamente, é isso que conclui a assustada imprensa internacional). Mas o Governo quis comprometer o Presidente da República e, por isso, requisitou logo a tropa. Sempre dá boas imagens de televisão.

Percebe-se a aceleração do plano, os patrões gritavam por requisição e perceberam que a eles não lhes é pedido que cumpram a lei dos serviços mínimos, ao passo que o Governo aspirava a chegar a este momento culminante, foi para ele que trabalhou, e nestas coisas os conselheiros eleitorais têm sempre pressa, não se pode deixar voar o pássaro que temos na mão. E assim se antecipou o momento épico para segunda-feira, as fardas na rua. Só que a partir daqui sobrou a repetição.

LEMBRA-SE DA GALP?

Entretanto, quem no Governo trabalha para soluções e não para encenações terá feito a pressão no lugar certo: fechar o acordo para o novo contrato coletivo. No momento em que escrevo, ainda não se conhecem pormenores do contrato, que a ANTRAM sempre quis que fosse pouco ou nada. Mesmo antecipando que se trate de um pequeno passo, a rejeição de uma frente sindical unida pelo sindicato dos motoristas das matérias perigosas é um erro. Há poucos motoristas em greve e a defesa que lhes sobra é o horário das oito horas. Mas precisam de chegar a uma vitória com um acordo. E só podem consegui-lo em conjugação com todos os sindicatos.

Pela sua parte, o Governo parece temer a própria radicalização. Entusiasmou-se com os primeiros dias e gastou demasiados cartuchos de emoção. Já não sobra nada, a não ser choques e provocações que disfarcem este cheiro a calculismo e cinismo e, para a parte do Governo que joga com o tremendismo antigrevista, o acordo com a Fectrans é má notícia. Fica sem agenda dramática perante uma greve esvaziada.

Resta a única questão fundamental: se a refinação e distribuição de combustível é estratégica para o país, a ponto de se chamar a tropa para conduzir os camiões, porque raio é que se privatizou a Galp? A resposta, para quem quer uma solução de tranquilidade para Portugal, é que se renacionalize a Galp e a sua distribuição.


O marxismo-leninismo-privatismo

A história de Angola e do MPLA tem episódios extraordinários, como a convergência inicial dos nacionalistas angolanos ou a vitória militar na grande batalha de Cuito Cuanavale contra o exército sul-africano, em que as forças cubanas foram decisivas. Num país que sofreu uma guerra colonial e uma guerra civil, reconstruir o Estado e organizar a vida nunca seria fácil, mas a referência de gerações de luta poderia ter ajudado a criar uma cultura democrática. Mas quem triunfou foi um grupo dirigente que foi usando em seu proveito o poder, desde o massacre de 27 de maio de 1977 até ao enriquecimento pessoal. Assim, num dia o partido era “marxista-leninista”, noutro dia ocupava a vice-presidência da Internacional Socialista; num dia convidava o PCP para o seu congresso, mas noutro o “convidado especial” era Paulo Portas.

Passada a ideologia, que a tudo se adapta, chegou o tempo da consolidação. Assim, o ex-Presidente José Eduardo dos Santos (foto) explicou a teoria da acumulação de capital como uma ação nacionalista: “Neste processo de luta contra a corrupção, há uma confusão deliberada feita por organizações de países ocidentais para intimidar os africanos que pretendem constituir ativos e ter acesso à riqueza, porque de um modo geral se cria a imagem de que o homem africano rico é corrupto ou suspeito de corrupção. Não há razão para nos deixarmos intimidar. A acumulação primitiva do capital nos países ocidentais ocorreu há centenas de anos e nessa altura as suas regras de jogo eram outras. A acumulação primitiva de capital que tem lugar hoje em África deve ser adequada à nossa realidade” (16 de outubro de 2013).

A acumulação primitiva durou mais do que os seus primeiros beneficiários. João Lourenço, que há pouco substituiu Eduardo dos Santos e entrou em guerra com a família deste, anunciou agora a privatização de 195 empresas públicas angolanas até 2022, 80 das quais já até ao fim deste ano. A lista inclui a Sonangol, a transportadora área TAAG, os Correios, a Angola Telecom, os bancos e empresas de seguros, a Endiama, as telecomunicações (Unitel), a cimenteira Nova Cimangola e até a Bolsa de Valores.

A promessa é de um processo à russa, que reforce as fortunas feitas, crie novos oligarcas e faça alianças com o capital estrangeiro. Neste capítulo, João Lourenço é mais ousado do que Bolsonaro, vende-se tudo. Foi a isto que os acumuladores angolanos chegaram.

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