(Daniel Oliveira, in Expresso, 17/08/2019)
O que se passa no sindicato dos motoristas de matérias perigosas representa, como escrevi na semana passada, a privatização do sindicalismo, com a contratação de um mercenário para dirigir uma luta laboral. E é o facto de ser mercenário que determina a sua urgência e irresponsabilidade. A marcação de uma greve está sempre associada a uma ética sindical (estranha a este charlatão), com critérios de proporcionalidade. Não se marca uma greve por tempo indeterminado que faria todo o país entrar em colapso por causa de um aumento em 2021, só porque as eleições são um momento propício. Uma greve destas é de vida ou de morte, como foi a dos mineiros ingleses que lutavam pela sua sobrevivência, nos anos 80. Todas as greves prejudicam pessoas, mas o sindicalismo que desiste de ganhar a solidariedade dos outros trabalhadores parte derrotado. A desproporcionalidade desta greve, não retirando justiça às suas reivindicações, deu espaço ao Governo para impor serviços mínimos pesadíssimos e uma requisição civil (instrumento criado em 1974 para impedir que a irresponsabilidade sabotasse a jovem democracia) previamente decidida como primeiro recurso e aplicada ao fim de 19 horas de greve. Um governo de direita não deixará de aproveitar este precedente. O sindicalismo, quando fica na mão de irresponsáveis, enfraquece-se. E fraco, não resiste cinco dias a um cerco.
Mas os efeitos perversos também são para o Governo. Marques Mendes disse que isto talvez venha a dar a maioria absoluta a António Costa. Porque ele surge como líder de um “governo da ordem e da autoridade”. Isto junta-se à imagem do “governo das contas certas”, que atrasa a recuperação de serviços públicos e prepara mais uma década de contração no investimento do Estado para ultrapassar as metas da ortodoxia de Bruxelas.
Imagino que muitos socialistas esfreguem as mãos de contentes: estão a roubar espaço à direita. É a mesma ilusão que Blair ou Schröder alimentaram antes de destruírem o centro-esquerda europeu. Um governo de esquerda que constrói a sua autoridade política com base na “mão de ferro” contra os sindicatos — já usara a polícia, sem qualquer justificação, contra os estivadores — e na “mão de vaca” no investimento público pode ganhar muitos votos à direita, mas está a derrotar o seu campo político.
A esquerda pode ter de usar a lei contra uma greve e pode ter de fazer cortes no investimento. Mas quando transforma isso em encenação de força, quando faz disso um gesto de propaganda política, fica refém do que deveria ser o oposto da sua cultura. O problema não é o comportamento do Governo, é sentir-se tão confortável neste papel. É, como ficou óbvio para todos, desejá-lo.
Enquanto o PS celebra os ganhos eleitorais, a direita ideológica pode cantar vitória. De uma assentada, vê a balança da opinião pública pender contra as lutas laborais e o PS assumir como sua a retórica disciplinadora dos trabalhadores. Não pode desejar mais do que isto. A crise do PSD e do CDS até se torna irrelevante. Eles deixam de ser necessários e podem ser substituídos por projetos radicais que falem em nome dos trabalhadores, puxando tudo mais para a direita. Foi assim que se destruiu a esquerda europeia: dando-lhe o comando de políticas que lhe deviam ser estranhas. O que tinha de estar a fazer toda a esquerda? A iniciar uma mudança radical no sindicalismo, para o renovar, fortalecer e proteger de oportunistas.
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