por estatuadesal
(Henrique Monteiro, in Expresso Diário, 13/11/2019)
Henrique Monteiro
(Hoje o “camarada” Monteiro escreve um artigo cheio de bom senso, o que é de louvar e que merece publicação. A Estátua não discrimina autores desde que o conteúdo seja justo e a ele adira, mesmo que esteja nos antípodas do posicionamento político desses autores. É o caso e, por isso, aqui fica.
Comentário da Estátua, 13/11/2019)
O caso da jovem de 22 anos que terá abandonado o filho recém-nascido num caixote de lixo é um horror? Claro que sim! Que se pode fazer? A nossa sociedade moralista e inquisitorial - em tudo o que não diga respeito às tradições e chamadas causas fraturantes - tem uma resposta: prender a mãe!
Sinceramente, não esperava que se chegasse a tamanha desumanidade. Recapitulemos: alguém com 17 anos, natural de Cabo Verde, tenta fugir da miséria vindo para Portugal (também li o seu nome, mas não o publico; haja recato). Cinco anos depois está a viver em condições desumanas numa tenda, ao pé de restaurantes, discotecas de luxo e cais de embarque de cruzeiros. Nestes cinco anos que esteve em Portugal quem lhe estendeu a mão? Quem se preocupou? Era uma miúda e nada lhe correu bem, o que se passou?
Quase ninguém se interroga e, quando chega o minuto de as autoridades se pronunciarem – depois de um outro sem abrigo ter alertado para o facto de estar um bebé num contentor –, é para lhe apontar o destino: a cadeia. A acusação é fácil: qualquer coisa como tentativa de homicídio qualificado na forma tentada. A prisão é preventiva, não houve julgamento. Mas as condições da prisão preventiva são mais do que duvidosas: não se prevê a continuação da atividade criminosa, nem prejuízo para o processo nem alarme social. Mesmo os mais alarves dos nossos concidadãos (e concidadãs), que também os há, além de felizmente não saberem exatamente quem é a rapariga de 22 anos, não me parece que a quisessem perseguir ou matar.
Felizmente, um Presidente da República crente e um grupo de advogados e magistrados com consciência manifestaram a sua perplexidade com a medida de detenção. E o caso não é para menos.
Quem, entre os que decidiram a detenção, a comentaram e a noticiaram sem escândalo, leu a parábola do bom samaritano? Quem reparou na parábola da mulher adúltera? Quem sabe o que é o desespero? Quem conhece a pobreza (sem pensar que pobreza é não ter dinheiro para beber uns copos numa discoteca)? Quem se coloca na pele de uma miúda de 22 anos, há cinco a viver sub-humanamente num país estrangeiro, sem apoio nem ajudas? Quem sabe o que é piedade, compaixão, perdão?
É tão triste num país em que se veem tantos direitos para quem tem alguma coisa, não se ver sequer um gesto humano para quem nada tem.
Aqui, onde posso, presto a minha homenagem aos juristas que pediram o habeas corpus daquela mãe desesperada. Aos técnicos de saúde mental, psiquiatras e assistentes sociais que já vieram interceder por ela. Ao Presidente, que disse palavras sensatas. Todos fazem envergonhar uma sociedade sem vergonha, que legisla, legisla, legisla e, no entanto, desconhece o mundo, a vida.
Como escreveu Chico Buarque numa canção “Ninguém viu, ninguém notou / A dor que é o seu mal./ A dor da gente não sai no jornal”.
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