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sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Os devassos puritanos

por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 13/1/2019)

António Guerreiro

Foi esta semana divulgado, com larga difusão, como é habitual sempre que se trata destes assuntos, um inquérito do Centro de Estudos da Federação Académica de Lisboa que apresenta os números (em percentagens) da violência sexual a que os universitários dizem ter sido submetidos. Num item do inquérito é dito (e cito a notícia do PÚBLICO) que “poucos (17,8%) encaram como uma violência continuar a ter sexo quando o/a parceiro/parceira adormece durante o acto”.

A violência sexual existe e não devemos tolerar que ela seja tratada de maneira displicente ou com eufemismos, e as mulheres de todo o mundo, sobretudo elas, têm razão de sobra para se manifestarem nas ruas e entoar um grito colectivo, como fizeram recentemente as mulheres chilenas: “O violador és tu!”. Mas quando os critérios de classificação da violência são tão alargados que incluem até levar o parceiro a dormir de indiferença ou de tédio e continuar, desperto e solitário, cheio de entusiasmo (prova de que o ser humano, racional e portanto dotado de linguagem, “faz amor” – bela e pertinente expressão! – com os seus fantasmas e o seu imaginário, coisa que estes inquéritos nem por sombras querem admitir), devemos suspeitar que os inquéritos destinados a medir os índices de violência e assédio sexual se destinam a fazer-nos concluir que quase não há sexo sem violência. O que eles não dizem é que, provavelmente, é no seio da conjugalidade que a violência é maior e mais persistente. A mais comum forma de violência sexual no espaço conjugal é a sua forma negativa, isto é, a total ausência de sexo e os interditos discursivos que essa situação cria, para que não se quebre uma união fundada na inércia, outras vezes em razões pragmáticas, e mais raramente noutros afectos respeitáveis que a família cristã exalta porque tem uma sabedoria antiga que lhe diz que ou as coisas tendem para essa pretensa neutralidade (raramente feliz)ou então o desfecho é o divórcio e a delapidação de patrimónios (às vezes, até do património parental). Se estes inquéritos, determinados por um neo-puritanismo, acabam por assimilar boa parte das atitudes e rituais sexuais a formas de violência, mais não seja porque deixam aos inquiridos a liberdade de estabelecerem como violência o que sentem como tal, então eles acabam, sem o saber, por entrarn a lógica da transgressão, do gozo que advém de quebrar as normas; ou então mostram uma embaraçosa cumplicidade com o pensamento de Sade (Sade, mon prochain, que título revelador!) e a sua maneira de enunciar, classificar, racionalizar e articular através de um discurso as práticas sexuais. É o triunfo do plaisir de tête. E assim o neo-puritanismo do nosso tempo revela-se muito mais apto a alimentar as coisas as formas mais extremas de violência sexual do que a permissividade promovida pelos discursos e as práticas da revolução sexual.

Mas os dados deste inquérito mostram bem onde reside a verdadeira obscenidade do nosso tempo: nos números, nas percentagens, nas estatísticas, na mensurabilidade elevada ao estado de apoteose, que permite dizer que 71,1%  dos estudantes entendem como violência “enviar uma SMS sexual fora de contexto”. É a cultura quantitativa da avaliação a funcionar, a “evaluative society” a mostrar os seus requintes. São todos estes dados que servem à “governance” para gerir todos os aspectos da vida social e política. A estatística é o instrumento quase único da governação.

Lendo o que revela o inquérito, uma questão legítima deve o leitor colocar: não é verdade que nas coisas do sexo ninguém diz a verdade? Seja porque queremos estrategicamente ocultar aos outros o que pertence à nossa intimidade, seja porque quase sempre, nesta matéria, mentimos a nós próprios, instalamo-nos na mentira e é preciso um longo trabalho analítico para sair dela. Por isso é que estes domínios são muito mais complexos do que nos querem fazer crer. E andamos nisto desde sempre: ora a ver a Santa Teresa de Bernini em êxtase místico; ora a vê-la a ter um orgasmo. ora temos a santa, ora temos a figura suprema da orgia barroca. A grande questão é que ambas coincidem e o espectador passa de uma a outra mesmo sem mudar de posição e deslocar o olhar.


Livro de recitações

“Pode enfiar as suas questões pelo cu acima”
Peter Handke, em resposta  a um jornalista, citado em Peter Handke; the scandal is not where they say it is, revista online Diacritik

Parece que esta frase (ou melhor, aquela de que esta é uma tradução) citada em vários jornais para dar provas da má educação e do pouco respeito que Peter Handke tem pelas práticas da “racionalidade comunicativa” e pelas instituições democráticas (o que faz dele, em muitos sectores e latitudes, uma figura de misantropo que carrega consigo o “peso do mundo”, uma espécie de escritor-pária a quem a Academia sueca, de maneira ingénua ou imprudente, resolveu outorgar o Prémio Nobel) não foi afinal pronunciada numa das disputas que teve recentemente com jornalistas. Parece que a frase foi pronunciada em Viena, em 1996 e nada tem que ver com o contexto do Nobel. Mas ela dá provas de uma hostilidade antiga, de uma irredutibilidade deste escritor ao sistema mediático. Isso, em si, não faz dele um bom nem um mau escritor, mas tem o mérito de mostrar que a história da literatura, e da arte em geral, está cheia de pessoas impacientes, intolerantes e que nem se importam de ser considerados energúmenos. O terror nas letras é uma virtude que devia ser mais cultivada.

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