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sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Acumulação cleptocrática

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 23/01/2020)

Alexandre Abreu

A investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação em torno dos Luanda Leaks, em que o Expresso tem tido um papel importante, é um trabalho notável de jornalismo de investigação. No entanto, é bem certo, tal como foi já referido por outros nestes últimos dias, que a origem cleptocrática da fortuna de Isabel dos Santos e de outros membros da elite angolana não era segredo para ninguém.

A despeito das narrativas micromitológicas sobre fortunas construídas a vender ovos, é bem conhecida a longa história de espoliação dos recursos angolanos por boa parte da elite deste país, com destaque para a família dos Santos, através do controlo sobre processos de privatização, concessões de licenças, venda de recursos a preços privilegiados e outras formas de participação nos dois lados de negócios em que a parte pública – o povo angolano – ficou sistematicamente a perder.

Tal como há muito é bem conhecido o prolongamento em Portugal desta constelação de interesses, o papel da economia portuguesa como plataforma para exportação e branqueamento de capitais e os aliados e cúmplices desta estratégia em Portugal – alguns dos quais são agora os primeiros a procurar abandonar o navio perante a iminência do naufrágio.

Esta longa e triste história é obviamente uma parte importante da explicação para o contraste entre o nível de rendimento de Angola e os seus deploráveis indicadores de desenvolvimento humano e social. Sendo certo que têm sido feitos progressos importantes nos últimos anos em vários destes aspectos (como a mortalidade infantil, que tem caído significativamente), é também certo que a situação da população angolana é muito pior do que o nível de rendimento deste país permitiria, assim os recursos disponíveis não tivessem ao longo dos anos sido tão concentrados em tão poucas mãos.

Não sendo caso único, não deixa de ser impressionante a desfaçatez com que tudo isto – este esbulho sem freio dos recursos de milhões por uma pequena elite, os contrastes entre miséria e ostentação – foi acompanhado por uma retórica de transformação revolucionária e justiça social. E um exemplo especialmente irónico desta hipocrisia foi a forma como a elite, a partir de certa altura, recorreu a uma categoria de análise marxista – a acumulação primitiva – para justificar o seu próprio enriquecimento a partir do controlo do Estado.

Por analogia com o processo histórico de constituição de uma estrutura de classes capitalista na Europa que emergiu do feudalismo, o enriquecimento sem limites dos privilegiados na órbita do poder na Angola contemporânea foi apresentado como historicamente progressista na medida em que corresponderia à consolidação de uma burguesia local capaz de pôr em marcha dinâmicas de acumulação de capital e de desenvolvimento das forças produtivas.

Foi o caso do discurso do Estado da Nação proferido por José Eduardo dos Santos em 2013, em que este se referiu à “acumulação primitiva de capital que tem lugar hoje em África” e à necessidade de “empresários e investidores privados nacionais fortes e eficientes para impulsionar a criação de mais riqueza e emprego” para, já então, alertar contra campanhas anti-corrupção que procurassem obstaculizar esses processos.

Em rigor, a acumulação primitiva a que Marx se referia não consistia tanto no enriquecimento original da burguesia quanto numa outra coisa: a generalização de relações de produção capitalistas na sequência da expropriação dos trabalhadores dos meios de produção (as terras dos camponeses, em particular) de modo a criar uma compulsão para a venda da força de trabalho. Para além de que a análise desse processo histórico por parte de Marx não se destinava a ser lida como um encómio ou um manual de instruções.

Sobretudo, o processo de acumulação cleptocrática que tem tido lugar nas últimas décadas em Angola, em articulação com Portugal, tem tido muito mais de rentismo do que de produtividade, muito mais de extraversão do que de dinamismo local, muito mais de parasitismo do que de progresso. Pelo que mais importante do que o materialismo histórico de José Eduardo dos Santos são as perspetivas de que, em Angola como em Portugal, as elites mais parasitárias possam ser sujeitas ao escrutínio da justiça e à democratização da economia. A vinda à luz do dia do modo como operam e a erosão de alguns dos seus pés de barro não deixam de ser passos importantes nesse sentido.

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