por estatuadesal
(José Pacheco Pereira, in Público, 28/03/2020)
Pacheco Pereira
A história é uma coisa muito complicada. Permite fazer comparações e permite enganarmo-nos com as comparações. Representa muitas vezes o único património de experiência para vermos como foi no passado e, ao mesmo tempo, seduz-nos com comparações que são enganosas, porque o passado não é o presente. Mas vale sempre a pena usarmos o único reservatório de experiência para defrontarmos uma situação nova. A história não substitui a ciência, a biologia, a medicina, a matemática. A ciência pode saber ainda pouco sobre a covid-19, mas sabe bastante sobre epidemias e pandemias, e esta, no seu desenvolvimento, não parece afastar-se dos padrões conhecidos. Já sabe menos sobre os comportamentos sociais que estão associados a esta pandemia do século XXI, e talvez aí a história saiba mais.
Comecemos por uma pergunta: como é que uma pandemia, com um vírus de uma família conhecida, altamente contagioso mas relativamente moderado nos seus efeitos, e com uma taxa de mortalidade baixa em geral, provoca este verdadeiro cataclismo social e económico, com o encerramento de quase todas as actividades produtivas, as cidades vazias, os transportes parados, milhões de pessoas confinadas em casa?
A pergunta não serve para contrariar os esforços actuais para travar o contágio do vírus e a importância do distanciamento social não só para impedir a propagação da doença, mas para proteger os grupos de risco conhecidos, em particular os mais velhos. A pergunta não questiona a atitude dura das autoridades sanitárias e dos Estados para tratar o maior número de pessoas, aliviar as que sofrem e impedir um grande número de mortes nos grupos de risco. Acima de tudo, não questiona a salvaguarda do efeito de sobrecarga dos sistemas de saúde, talvez o mais perigoso efeito da disseminação da infecção. Mas tem sentido, até porque é legítimo colocar a questão de saber se não estamos a ter uma overdose de resposta, cujos efeitos perversos podem ser maiores, sem razão. A pergunta não diz que estamos a ter excesso de resposta, diz que essa hipótese pode ser legitimamente colocada sem pôr em causa o que se está a passar, tanto mais que há muitos factores desconhecidos sobre a pandemia. Mas o principal factor conhecido nas respostas sociais, o medo, provavelmente nunca daria espaço a que se mudasse alguma coisa.
Se tivermos em conta a pergunta, devemos analisar muitas das diferenças entre a pandemia da covid-19 e a sua antepassada mais semelhante na dimensão, a gripe pneumónica de 1918-9, a “gripe espanhola”. O grau de destruição e morte da pandemia de 1918 foi enorme, na ordem de muitas dezenas de milhões de pessoas, mas as fábricas não pararam, a quarentena severa limitou-se, em grande parte, aos hospitais e às casernas, embora a proibição de concentrações, espectáculos e outros ajuntamentos, assim como o uso de máscaras, aproxime a gripe de 1918 da covid-19. Um caso grave de contágio colectivo foi uma parada em Filadélfia, com cerca de 200.000 espectadores. No dia seguinte, os hospitais estavam cheios.
Podíamos então fazer a contrapergunta: se tivessem sido tomadas em 1918-9 as medidas actuais, teria sido possível diminuir drasticamente o número de mortes? E, dada a elevada taxa de mortalidade, não teria então tido mais sentido essa quarentena rigorosa, tanto mais que os conhecimentos científicos da época já eram suficientes para perceber os mecanismos de propagação? A resposta é provavelmente sim, mas sem a militarização generalizada dos países, em particular as cidades, nada de parecido com o que se passa hoje teria sido possível. Estávamos num tempo de grande convulsão social, com revoltas e revoluções em vários países, violência social e política generalizada, que coincidiu com os efeitos devastadores da Primeira Guerra e, depois, da pandemia propriamente dita. Entre 1917 e 1921, a Europa estava a ferro e fogo: levantamentos, greves, motins, assaltos nas ruas, tudo fazia parte da vida colectiva. Mesmo em Portugal, que militarmente sofreu o seu maior abalo nas batalhas do final da guerra, com mortos, feridos, gaseados e prisioneiros, conheceu-se um período impar de convulsões sociais, desde a primeira tentativa de uma greve geral, em 1918, aos assaltos às mercearias e armazéns suspeitos de açambarcamento, aos assassinatos políticos e bombas.
A gripe de 1918 tinha também um efeito traumático de matar mais jovens adultos, enquanto a covid-19 mata os velhos. Na verdade, esse efeito dobrava o da guerra, onde uma parte importante da população de jovens numa aldeia podia desaparecer numas horas nas trincheiras do Somme e depois vir, mais lentamente, a morrer de gripe quando regressava da tropa. Hoje, com a covid-19, verifica-se que muitos lares de idosos são verdadeiras incubadoras do vírus, mas uma sociedade que vive o mito da juventude na arte, na cultura, no desporto, na vida, permanece bastante indiferente à sorte desses alvos preferenciais do vírus.
As grandes diferenças entre 1918 e 2020 são duas: a globalização e o tecido comunicacional, no qual são embebidas todas as acções e decisões. E é esse tecido que muda quase tudo nesses cem anos de diferença. Por um lado, tem um enorme feito positivo de fornecer informação, pois hoje o homem comum nas cidades sabe muito mais sobre o que se está a passar e sobre o que deve ou não fazer, do que em 1918. Por outro lado, dá uma dimensão individual e colectiva ao medo, cria pela “massagem” da comunicação social, pelo monotematismo dos noticiários, pelas reportagens casuísticas e, nalguns casos, pelo alarmismo de jornalistas que não percebem os números, um efeito de favorecer uma pressão para os excessos da quarentena que não é a mesma coisa do que a distanciação social.
Voltaremos ao assunto.
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