por estatuadesal
(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 16/04/2020)
São muitas as incógnitas em torno da Covid-19. Ainda não sabemos até que ponto é que o contacto com o vírus provoca imunidade, nem quão duradoura possa ser essa imunidade. Desconhecemos de que forma é que o vírus e a sua transmissão são afetados pelo calor, podendo vir a recuar no verão. Nem sequer sabemos bem qual a verdadeira prevalência da doença: quantas pessoas têm sido infetadas sem saberem e, questão que está com esta relacionada, qual a verdadeira taxa de letalidade desta doença. E ainda não sabemos quão distantes estamos de vacinas e protocolos de tratamento eficazes, nem qual o caminho mais promissor para lá chegar. De todas estas questões depende a evolução futura desta pandemia e da nossa forma de nos relacionarmos com ela, mas são claros os limites colocados pela nossa ignorância, apesar do trabalho incansável de centenas ou milhares de equipas em todo o mundo para que tenhamos respostas o mais rapidamente possível.
Outros aspeto intrigante desta pandemia é até que ponto é que esta está já disseminada, ou vai disseminar-se, pelos países em desenvolvimento do chamado Sul global. Três meses e meio depois do primeiro cluster de casos declarado na China (a 31 de dezembro), três meses depois do primeiro caso detetado fora da China (na Tailândia, a 13 de janeiro), menos de dois meses depois do início dos surtos no Irão e na China (no final de fevereiro), os dados disponíveis são intrigantes: dos mais de dois milhões de casos confirmados até à data, pouco mais de 60.000 ocorreram na América Latina, menos de 20.000 foram em África e dos mais de 300.000 casos registados na Ásia praticamente 5/6 foram em três países apenas: China, Irão e Turquia. Os Estados Unidos, sozinhos, têm muito mais casos confirmados (mais de 600.000) do que todos os países em desenvolvimento em conjunto.
Há duas explicações alternativas principais para este padrão intrigante e é possível que ambas tenham algo de verdade. A primeira é que a prevalência real nestes países é muito mais elevada do que o número de casos confirmados sugere, mas está a passar debaixo do radar. Na maioria dos países mais pobres, o acesso aos serviços de saúde é bastante mais limitado, a capacidade de testagem é reduzida e mesmo em condições normais são muitas as mortes por infeções respiratórias: em 2017, por exemplo, estima-se que dois milhões e meio de pessoas tenham morrido de pneumonia em todo o mundo, tendo esta sido a principal causa de morte para as crianças com menos de cinco anos. Um comentário no The Lancetchama à pneumonia “a doença da pobreza por excelência”. Se assim for, descobri-lo-emos sem dúvida mais tarde através de testes serológicos ou de análises a posteriori dos padrões de mortalidade, mas neste momento podemos estar a subestimar largamente até que ponto o novo coronavírus já está disseminado nestes países.
Mas há hipóteses alternativas, algumas das quais constituem fatores de esperança. Pode ser que a disseminação da pandemia nestes países esteja apenas mais atrasada devido aos seus menores níveis de conetividade global. Pode ser que as suas populações em geral muito mais jovens, numa doença que sabemos afetar principalmente os mais velhos, constituam um elemento de proteção contra a transmissão ou pelo menos um elemento de redução do número de casos graves e fatais e, consequentemente, da visibilidade da epidemia. Pode ser que a exposição prévia à malária ou a algum outro agente patogénico proporcione algum tipo de imunidade cruzada que ainda desconhecemos. E pode ser que os climas mais quentes sejam efetivamente um fator relevante de limitação da transmissão.
Não é fácil testar estas várias hipóteses e controlar os efeitos de umas sobre as outras, especialmente em tempo real, principalmente porque existe alguma coincidência e associação entre estes vários fatores. Olhando apenas para África, por exemplo, verificamos que dos cerca de 18.000 casos confirmados, quase nove mil são em apenas quatro países: África do Sul (2.500), Egipto (2.500), Argélia (2.200) e Marrocos (2.000). Estes quatro países encontram-se simultaneamente entre os relativamente mais ricos e com maior capacidade estatal do continente, entre os que têm menor prevalência de malária, entre os que têm os climas de tipo menos tropical (se bem que não necessariamente menos quentes) e entre aqueles em que a idade mediana da população é relativamente mais elevada.
Tudo isto faz com que o puzzle não seja fácil de resolver, mas a questão é de importância vital: se os países mais pobres não beneficiarem de algum tipo de fator de proteção como aqueles que acabo de referir, a combinação da gravidade desta epidemia com as vulnerabilidades subjacentes destes países e comunidades ao nível dos sistemas de saúde, condições habitacionais, capacidade de resposta orçamental, etc. tem um potencial de calamidade gigantesco. Conhecemos alguns precedentes: a gripe pneumónica de 1918-19 matou muitos milhões por todo o mundo, mas calcula-se que mais de 60% do número total de mortes tenha tido lugar na Índia, onde o efeito da pandemia se somou ao da desnutrição causada por um período de seca e pela confiscação de alimentos por parte do império colonial britânico. Dos cerca de 30 milhões de mortes causadas até hoje pela pandemia de HIV-SIDA, cerca de metade foram em África. São muitos os mecanismos pelos quais a pobreza interage com os agentes patogénicos para potenciar a morbilidade e mortalidade.
E claro que os países do Sul global são também especialmente vulneráveis do ponto de vista do impacto económico da crise. Desde logo por causa dos níveis muito mais elevados de pobreza, mas também por causa de alguns mecanismos específicos de vulnerabilidade adicional. Muitos são extremamente dependentes da exportação de um número reduzido de matérias-primas cujo preço e volume transacionado sofreram já fortes quebras e tenderão a continuar a cair num contexto de recessão global. Muitos são especialmente vulneráveis aos humores variáveis dos fluxos globais de capital: desde que esta crise começou, o fluxo negativo de capital dos países em desenvolvimento em busca de aplicações consideradas mais seguras excede largamente aquele que ocorreu no mesmo período após o desencadear da crise financeira internacional.
A um nível mais estrutural, os países em desenvolvimento têm também uma prevalência muito maior de trabalho informal, que é afetado de forma especialmente brutal num contexto de confinamento e crise: a OIT calcula que 59% dos trabalhadores de todo o mundo sejam trabalhadores informais, tipicamente por conta própria ou no contexto de micro-empresas, mas essa percentagem desce para 18% nos países desenvolvidos e sobe para 67% nas economias emergentes e em desenvolvimento. O exemplo da Índia nas últimas semanas dá-nos uma amostra do que está em causa: para muitos milhões de pessoas no limiar da subsistência, sem poupanças próprias ou acesso a sistemas de proteção social, o recolhimento obrigatório significa não ter trabalho e, muito rapidamente, não ter o que comer.
Bem sabemos que neste momento de angústia generalizada cada um está principalmente a olhar para si, para a sua comunidade e para o seu país. Porém, esta não é necessariamente a forma correta de olharmos para questões globais com as pandemias. Para além de estar em causa a nossa humanidade comum e um potencial de impacto gigantesco sobre a saúde, mortalidade e pobreza globais, sabemos também que são muitos os mecanismos de interdependência que não devemos ignorar, começando desde logo pelo impacto potencial que a eventual manutenção do vírus em circulação nalguns dos maiores bairros de lata do mundo pode ter para o seu potencial de mutação para estirpes mais virulentas e fatais. Ainda que com enormes diferenças de vulnerabilidade, não deixamos de estar nisto juntos.
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