Posted: 17 Apr 2020 03:41 AM PDT
«O PÚBLICO noticiou ontem que algumas empresas cotadas, incluindo EDP e Galp, mantêm a intenção de pagar os dividendos relativos a 2019. Acontece que estamos na pior crise da economia mundial desde os anos 30, em que Portugal espera uma contração do PIB de 8% (segundo o FMI). Quando trabalhadores e pequenos empresários perdem tanto (muitos quase tudo!), pagar dividendos é um rastilho para a raiva política (como disse o Financial Times). É também provavelmente uma decisão estúpida para a própria saúde financeira das empresas, que podem estar a gastar agora em dividendos recursos que lhes farão falta daqui a uns meses.
Em Portugal, há 40 mil novos desempregados (um aumento de mais de 12% em apenas um mês e meio, dos 315 mil do final de fevereiro) e 930 mil trabalhadoras e trabalhadores com quebras significativas de rendimento por estarem em lay-off. Nunca é demais recordar que estas vítimas da crise são aquelas que estão do lado bom do mercado de trabalho: têm um período suficiente de descontos para a segurança social, vínculos contratuais com as empresas. Do lado mau estão todas as pessoas com vínculos precários, pequenos empresários e trabalhadores independentes. Sabemos que são cerca de um milhão. Sabemos também que o formulário da segurança social para o apoio previsto pelo Governo foi disponibilizado a 1 de abril e que, nos primeiros quatro dias de abril, cerca de 100 mil (10% do universo) se candidataram.
Também sabemos que o apoio (para quem não tem filhos) tem como limite máximo o salário mínimo nacional e só está disponível para quem tem descontos para a segurança social em pelo menos seis meses dos últimos 12. Do lado escuro estão as pessoas que recebem uma parte substancial (ou a totalidade) do seu rendimento sem o declarar, que neste momento estão dependentes do Rendimento Social de Inserção – um apoio curto, com burocracia excessiva e prazos demorados –, cujas condições de acesso não foram alteradas. A decisão de prolongar as prestações dos atuais beneficiários é boa para quem já tem o apoio, mas de pouco serve à condutora de tuk-tuk que vivia essencialmente de gorjetas e está neste momento sem poder pagar as contas. O facto de acionistas de grandes empresas se prepararem para manterem o seu rendimento é só mais uma evidência da polarização excessiva da nossa sociedade: ou a reformamos rapidamente, ou o risco de desintegração, pela mão da raiva política assinalada pelo respeitável Financial Times, é real.
O que podemos fazer? Ocorrem-me pelo menos duas coisas. A primeira é que o Governo iniba as empresas que recebam apoios no contexto desta crise de distribuir lucros e pagar prémios de desempenho. O The Guardian noticiou na quarta-feira que a Comissão Europeia vai proibir dividendos e prémios nas empresas em que o Estado se torne (temporariamente ou não) acionista devido à crise. Por enquanto, em Portugal esta possibilidade só está em cima da mesa para a TAP. Mas não há qualquer razão para a interdição não se alargar a todas as empresas com ajudas. Em França, Bruno Le Maire já fez saber que as empresas que recorram a ajudas do Estado, incluindo moratórias nos pagamentos de Segurança Social e impostos, não devem distribuir lucros ou pagar dividendos.
A segunda é menos direta, mas igualmente eficaz. Vamos imaginar que estas empresas pagam dividendos porque realmente podem e não estão a calcular mal os riscos de ficarem descapitalizadas em face da maior crise dos últimos 100 anos. É plausível, quando estamos a falar da EDP e da Galp. Mas isso quer dizer que há rendas, que é como quem diz: a remuneração do capital e dos conselhos de administração é superior àquela que lhes cabe como retorno justo da sua produtividade. Portanto, é evidente que há espaço para aumentar os impostos sobre os lucros destas grandes empresas e sobre as remunerações dos seus acionistas e quadros dirigentes, sem que isso tenha um custo económico. Quero dizer: impostos que recaem sobre rendimentos que são rendas desincentivam as ditas rendas, mas não desincentivam a atividade económica.
Isso mesmo mostrou o artigo “Optimal Taxation of Top Labor Incomes: A Tale of Three Elasticities”, publicado em 2014 no American Economic Journal: Economic Policy por Thomas Piketty, Emmanuel Saez e Stefanie Stantcheva. Os autores mostram que os países onde as taxas de imposto sobre os contribuintes mais abastados são mais elevadas são aqueles onde as administrações recebem prémios menos chorudos, sem impacto no crescimento económico. Perante uma fiscalidade mais pesada, os quadros dirigentes têm menos incentivo para investir tempo e energia a desenhar formas de se pagarem a si próprios montantes chorudos.
O problema da solidez financeira em face da crise foi o que levou vários reguladores, como o BCE e a Autoridade Europeia de Seguros e Fundos de Pensões, a restringirem a distribuição de dividendos às empresas que regulam. Mas por que razão os Conselhos de Administração tomam estas decisões arriscadas? O artigo “Dividends and bank capital in the financial crisis of 2007-2009”, de 2011, olha para decisões semelhantes tomadas pelos bancos durante a última crise.
Os autores – quatro economistas das universidades de Nova Iorque, Berkeley, Princeton e London Business School – analisam as decisões de 21 grandes bancos nos EUA, Reino Unido e Europa e mostram que estes continuaram a pagar dividendos ao longo da crise. Uma das razões apontada para este comportamento é a de que os membros das administrações são também acionistas, e olham sobretudo para o próprio umbigo quando o barco da economia se está a afundar. É certamente por isso que a CMVM recomenda que os Conselhos de Administração façam chegar aos acionistas informação de qualidade, que transmita com clareza a situação de incerteza do contexto atual e lhes permita tomar decisões informadas que não coloquem em risco a sustentabilidade financeira das empresas. Proteger, portanto, os acionistas não gestores dos acionistas insiders.
Nas palavras dos autores do artigo: “Deve ser difícil de acreditar, mas os Conselhos de Administração dos bancos praticamente não diminuíram os dividendos nos primeiros 15 meses da pior crise desde a Grande Depressão.” Afinal, a pior crise afinal ainda estava para vir e estamos agora mergulhados nela. Parece que os reguladores dos bancos puseram a incredulidade de parte e proibiram estes comportamentos irresponsáveis. E para as empresas não financeiras? Vamos ter de esperar até à próxima crise?»
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