Posted: 18 Apr 2020 04:06 AM PDT
«Com o país de olhos postos no contador diário apresentado por pivôs-catequistas, tento ver o futuro. Em dias bons vejo nações que valorizam o Estado Social e o SNS. Políticos que leram o editorial do insuspeito “Financial Times”, onde de defende um papel mais robusto para os governos na economia, mercados laborais mais seguros, serviços públicos tratados como investimento, redistribuição de recursos e impostos sobre os mais ricos. Um povo que não voltou a engolir a conversa de 2011. Noutros dias enjoo-me com o “vai ficar tudo bem”, que nos trata como crianças. Não vai ficar tudo bem e só depende de nós se o mal que vai ficar ajudará a construir qualquer coisa decente para os nossos filhos ou se apenas nos retirará mais direitos sociais e liberdades cívicas. O indispensável regresso condicionado às ruas e ao trabalho, antes da vacina, vai aumentar o controlo social. Temos de ser cuidadosos com as portas que vamos abrindo, porque algumas nunca mais se fecharão. Se isto durar mais do que um ano, o excecional vai normalizar-se. Até porque corresponde ao ar deste tempo: a tecnologia ao serviço da vigilância em sociedades que prescindiram da privacidade e, por consequência, de um bom quinhão de liberdade.
Não há nada de novo na proposta dos CEO de algumas das maiores empresas nacionais, que queriam que o Estado, por via das operadoras de telemóveis, rastreasse movimentos e contactos de infetados para notificarem e imporem quarentena a quem tenha sido exposto ao risco. A Google e o Facebook já sabem mais sobre nós do que alguma vez a Stasi conseguiu saber sobre os cidadãos da RDA. Mas espero que o Estado me proteja do abuso, não que o incentive ou me peça para colaborar voluntariamente com ele. Dado este poder de vigilância aos Estados, isto será o novo normal. Agora era contra a covid-19, depois seria contra outra epidemia, o terrorismo, a segurança nacional... E não me venham dar garantias de privacidade, que até seria possível. Temos demasiados anos disto para se desculpar a candura.
Este é o momento ideal para meter o pé na porta, aproveitando o medo dos cidadãos, o catecismo do jornalismo, o patriotismo da oposição e o fascínio pela eficácia da tirania tecnológica da China. Imaginem este instrumento disponível na crise económica, social e política que nos espera. Imaginem os governos que ainda vão ser eleitos por essa Europa fora. Imaginem a repressão social que ainda será necessária para garantir que esta crise não prejudica quem neste preciso momento despede precários mas distribui dividendos. Felizmente, o poder político continua, em Portugal, a resistir a este caminho. A Alemanha propõe a criação de um “certificado de imunidade”, um passaporte que permite conquistar o estatuto de cidadão pleno. Parem de olhar para a curva, lembrem-se dos dias que se seguirão e pensem em todas as potencialidades deste ‘biopoder’. Querem que fique tudo bem? Não deixem que o medo nos ofereça o inferno para que toda a literatura futurista nos avisou. Estejam dispostos a correr, como outros correram, alguns riscos pela liberdade. Foi o medo que construiu todas as tiranias.»
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