por estatuadesal
(Vítor Lima, 21/04/2020)
Antes do 25 de Abril, Portugal era uma periferia pobre da Europa. Hoje, continua a ser.
Antes, a pide zelava pela boa ordem na rua e a censura, nas cabeças. Hoje, o regime sabe onde estamos, com quem falamos e o que gastamos através de tecnologias, tão silenciosas como o coronavírus.
Antes, havia uma assembleia nacional com três grupos com algumas diferenças – os fiéis do Caetano, a “ala liberal” e os ultras, adeptos da manutenção das colónias como dádiva divina. Hoje, é a homogeneidade política que irmana os artistas da AR, um género de palafreneiros do século XXI que tratam o capital, com o mesmo obediente desvelo como, há quinhentos anos, se tratavam os cavalos dos senhores.
Ao fundo da rua, confinado, um povo manso, desorganizado, sofredor, calado, resignado, excepto quando emigra. Até quando?
Antes, nos festivais da Eurovisão o país era referido carinhosamente, pelos apresentadores, por “le petit Portugal” um adjetivo que não era aplicado à Dinamarca ou à Bélgica, países bem mais pequenos; e que, com a Espanha, em complot ibérico, trocavam votos, um no outro, com a plateia a rir.
Portugal significava emigração e guerras coloniais. E, nos últimos anos do regime, foi encetado um processo de criação de grupos económicos, com ligações a empresas estrangeiras, dotadas de know-how e, com o desenvolvimento de um sistema financeiro baseado na especulação; todo esse projeto industrial e financeiro viria a ruir ainda em 1973, com a reabertura do Suez e o encerramento da Bolsa.
Politicamente, o regime, em 1969, promoveu um circense número de eleição de deputados, com candidaturas de oposição, procurando que, entre aquela, Mário Soares sobressaísse como a figura de uma mansa oposição legalizada (ele até aceitou não referir a guerra colonial durante a campanha); e que isolasse os mais radicais, dando assim, um sinal de abertura para o exterior. Esse projeto falhou e o regime endureceu, colocando a pide em trabalhos redobrados na repressão; até porque haviam surgido grupos capazes de proceder a mediáticos atos de sabotagem.
As ligações com Espanha não eram preponderantes, como hoje, mantendo-se a centenária preferência pela Inglaterra, porquanto “de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento”; no entanto, Franco, nos anos 60 através de uma tecnocracia com raiz na Opus Dei, ultrapassou os níveis de vida vigentes num Portugal, atolado na guerra colonial.
Em dezenas de anos de omnipresente beatice católica e baixo nível educacional gerara-se uma forte emigração clandestina, em grande parte proveniente do campo e que se fixou, sobretudo em França. Eles, na construção civil e elas, como porteiras ou nas limpezas. O “bairro” de barracas em Champigny, povoado por portugueses, ficou na memória de quem o viu.
A guerra colonial era contestada por minorias e aceite, com condescendência pela maioria; os soldados tinham uma oportunidade de amealhar algum dinheiro para o casamento, no regresso da guerra; e, entre os mais instruídos, só uma minoria se decidiu pela fuga. Tudo, num contexto global dominante, de consideração das colónias como território pátrio.
A pide não foi justiçada, Caetano e Tomás foram conduzidos para o Brasil e não houve Nuremberga para julgar o regime ditatorial mais duradouro da Europa; houve sim, uma imensa lavandaria, uma imensa reciclagem que conduziu a “isto” – o regime atual.
Houve fugas de capital (que continuam… agora incluídas em estatísticas), nacionalizações de empresas falidas, recapitalizadas pela carga fiscal e pela perda de poder de compra que se seguiu à “normalização" do 25 de novembro. Seguiram-se após 1985, as privatizações inseridas em redes transnacionais ou em alguns dos grupos empresariais sobrantes; estes que, entretanto, se ancoraram no comércio a retalho ou como beneficiários de parcerias público-privadas, sem desdenharem o maná dos fundos comunitários. Da banca de raiz nacional sobrou a majestática CGD; e das burlas BPN ou BES ficaram os prejuízos.
Os estados-nação surgiram no século XVII como delimitações criadas por capitalistas nacionais em feroz concorrência face ao exterior. Hoje, em Portugal, quase não existem capitalistas de origem, com dimensão para atuar, num quadro global ou sequer, europeu.
Existe, sobretudo, um espaço desconexo, atravessado pelas redes das multinacionais interessadas na posição geográfica ou, no (baixo) preço do trabalho. Um espaço parasitado por uma classe política de baixo quilate cultural e ético, integrada em redes mafiosas ou do capital financeiro. Um espaço habitado por dez milhões de seres humanos, pobres, enjaulados, mansos e, para mais, sem futebol, há várias semanas...
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