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terça-feira, 28 de abril de 2020

Um modelo que não nos serve

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 24/04/2020)

Esta crise é uma tempestade perfeita para as economias periféricas do Sul da Europa. Para além de algumas delas se contarem entre os epicentros da epidemia, são economias altamente dependentes dos sectores do turismo, hotelaria, restauração, imobiliário e construção, que estão e vão continuar a ser afetados de forma especialmente intensa e duradoura pelas limitações adotadas em resposta à crise médico-sanitária e pelas alterações de padrões de consumo e estilo de vida que provavelmente se seguirão. São economias com tecidos produtivos muito pulverizados, com um peso das micro e pequenas empresas bastante superior à média europeia, e mercados de trabalho muito precarizados, com elevada prevalência de trabalhadores por conta própria e de modalidades atípicas e mais vulneráveis de contratação. Finalmente, têm muito pouca capacidade orçamental para responder à crise: em parte por desenho institucional, uma vez que não possuem soberania monetária; em parte por herança do passado, dado o fardo do endividamento que trazem da última crise.

Nas últimas semanas, pelo menos dois exercícios de medição e comparação internacional da vulnerabilidade das economias à crise do coronavírus ilustram isto mesmo. Em março, a agência alemã Scope Ratings publicou uma matriz de vulnerabilidade económica e dos sistemas de saúde que considerava, na parte económica, o peso do turismo no produto, o peso do emprego temporário e em micro-empresas, o peso da produção industrial e o grau de participação em cadeias de valor globais. Sem surpresa, as quatro economias europeias que surgem como mais vulneráveis são, por esta ordem, a Itália, a Grécia, Espanha e Portugal.

Há pouco dias, a The Economist elaborou o seu próprio ranking de vulnerabilidade, construído através da agregação de cinco indicadores: peso do emprego em pequenas empresas; percentagem de empregos que se estima não poderem ser realizados a partir de casa; peso dos sectores do lazer e restauração; dimensão do estímulo económico anunciado em resposta à crise; e medidas de proteção do emprego. A Grécia surge em primeiro lugar, a Espanha em terceiro e a Itália em quinto. O artigo não disponibiliza o ranking integral, não permitindo localizar Portugal ou perceber quais sejam o segundo e quarto classificados, mas parece bastante provável que um destes últimos seja o nosso país: as vulnerabilidades destas economias, incluindo a portuguesa, são bastante robustas à escolha de diferentes indicadores.

No meio de todos estes fatores de vulnerabilidade, há aspetos estruturais com raízes históricas profundas e especialmente difíceis de alterar. Mas há muito que decorre diretamente de escolhas políticas concretas. A estratégia de transformação de Portugal numa “Flórida da Europa”, especializada na exploração do turismo de sol e mar e na atração de reformados dos outros países europeus, foi afirmada em diversas ocasiões neste século e inspirou as decisões de mais do que um governante. Uma das origens intelectuais desta ideia é um artigo de 2006 do economista norte-americano Olivier Blanchard, em que se defendia explicitamente o “modelo Flórida” e a desvalorização interna como saídas para as dificuldades criadas pelo euro.

Terá ficado entretanto claro que uma tal sobre-especialização em segmentos do sector dos serviços caracterizados por salários baixos, empregos precários e baixa produtividade assenta numa visão estática e estreita das vantagens comparativas da nossa economia e introduz tendências para a desindustrialização, para a formação de bolhas de especulação imobiliária e para a vulnerabilização acrescida de uma boa parte da sociedade. Se essa aposta já comportava aspetos preocupantes mesmo em tempos de relativa bonança, revela-se realmente problemática perante uma crise como aquela com que estamos confrontados. Subitamente, tornam-se evidentes as desvantagens da excessiva dependência da monocultura do turismo e a importância da indústria nacional, não só para a economia como até para a segurança e para a capacidade de resposta médico-sanitária do nosso país.

É certo que não é e nunca foi possível converter instantaneamente a economia portuguesa numa economia altamente produtiva, maioritariamente assente em indústrias de alta tecnologia, serviços avançados e empregos de qualidade. Mas um longo período de apostas em sentido contrário, nalguns casos diretamente, noutros como consequência da dinâmica “natural” do mercado único quando se abdica de grande parte dos instrumentos de política económica, nomeadamente de politica industrial, não deixa de ter uma quota-parte importante da responsabilidade por trazer-nos até aqui. Esta crise está a deixar claro que este é um modelo que não nos serve; a discussão que se segue é como encetar o caminho para um modelo diferente.

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