por estatuadesal
(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 04/04/2020)
27 de Março. Sozinho na Praça de São Pedro deserta, o Papa percorre a imensa superfície apenas acompanhado por dois acólitos até um cadeirão montado sobre um palco, virado para a invisível multidão de fiéis. Então, começa a falar-lhes, como se eles estivessem ali a escutá-lo. De todas as impressionantes imagens que tenho visto nestes dias, esta foi a que mais me marcou e que, estou certo, guardarei para sempre, sobrevivendo à memória destes tempos de pesadelo. “Pai, Pai, porque nos abandonaste?”, pareceu-me ouvir Francisco gritar no silêncio daquela praça, que nenhum Papa e nenhum outro homem escutara antes dele. Os deuses abandonaram os seus crentes. Só a ciência — os médicos, os enfermeiros, os cientistas, os investigadores — pode salvar a Humanidade, não a fé. Até disso se fez prova agora.
28 de Março. A discussão sobre a falta de legitimidade que teriam agora perdido os defensores da saúde privada — nomeadamente, na gestão dos hospitais públicos — face aos méritos demonstrados pelo SNS nesta crise não faz qualquer sentido. Tirando o caso extremo e ridículo de André Ventura e a sua proposta de extinção do SNS, uma coisa não tem nada que ver com a outra. A saúde privada existe para quem a pode pagar e não custa um tostão aos contribuintes, funcionando ainda como complementar ao SNS, que tantas vezes a ela recorre para suprir carências próprias e que, sem isso, deixaria as pessoas desamparadas. O SNS existe exclusivamente suportado pelo dinheiro dos impostos pagos pelos contribuintes e, por mais que sejam legítimos e justos os elogios que lhe façamos (e legítimas também as críticas), não seria expectável outra coisa que não vê-lo a responder agora, com todas as suas forças e toda a sua dedicação, a todos, sem excepção. Como está à vista, o problema do SNS, da sua sobrecarga crónica e do seu custo sempre crescente e cada vez mais difícil de comportar está nos abusos dos seus utilizadores, incentivados por medidas políticas demagógicas, como a isenção de taxas moderadoras. Na notável entrevista que deu a este jornal na semana passada, o director do Serviço de Infecciologia do Hospital de São João, António Sarmento, teve a coragem de falar no problema dos custos e da insustentabilidade do seu financiamento sem limite quando, por exemplo, se pensa no preço exorbitante dos novos medicamentos contra o cancro ou a hepatite. As sociedades de bem-estar, onde nos habituámos a achar exigível viver até aos 90 anos de perfeita saúde, têm o custo correspondente. Que é o de, numa crise de saúde pública extrema, faltarem camas em cuidados intensivos, faltarem ventiladores para salvar vidas, faltarem máscaras e material de protecção para os que têm de salvar vidas. Porque gastámos o dinheiro em TAC e RM que todos se acham com o direito de exigir por uma simples dor de barriga.
30 de Março. Por estes dias, sabe bem escutar o incorrigível optimismo de António Costa: a nossa estratégia está a ter “belíssimos resultados”. Oxalá. Eu, que não sou muito optimista por natureza, continuo sem perceber se os nossos números são bons, olhados a frio, ou se são alarmantes, medidos em comparação com o número de habitantes. Vejo que o número de recuperados é quase sempre o mesmo e que estão sempre para chegar mais ventiladores, mas que o seu número mantém-se o mesmo do início, igual à data da fundação da nacionalidade: 1143. Não consigo enxergar qualquer estratégia, antes ou agora, para deter a progressão triunfal do vírus nos lares e não consigo perceber porque são precisos tantos dias, tantos estudos e tantos diplomas diferentes para pôr fora das prisões quem é mais perigoso lá dentro do que cá fora. E a senhora que me perdoe, mas a dra. Graça Freitas, quanto mais fala, menos confiança me inspira — talvez, justamente, pela volúpia com que se agarra ao microfone.
31 de Março. Afinal, não sou só eu que não consigo enxergar claro. Da reunião ao mais alto nível entre os políticos e os técnicos saiu apenas uma conclusão consensual: “Ninguém sabe ao certo o que se passa.”
Sabemos, talvez, que o monstro se aproximará do ponto de saciedade em Itália, mas que está descontrolado em Espanha e em França. Que finalmente reduziu Trump à insignificância da sua idioteira nos Estados Unidos e que o seu discípulo Bolsonaro irá pelo mesmo caminho, quando vidas perdidas significarem votos ou apoios perdidos. E sabemos que a covid-19 significa uma oportunidade de luxo para os ditadores disfarçados de democratas fazerem mão baixa sobre a liberdade dos seus cidadãos — Netanyahu em Israel e Orbán na Hungria, esse país onde há muito a UE deveria ter forçado a escolha: ou Orbán ou a expulsão.
Ah, e há os holandeses, os novos-ricos da Europa, actuando como gauleiters da Alemanha. O país que enriqueceu graças à UE e que rouba parte dos impostos devidos aos outros países europeus vem depois pregar-lhes moral financeira! Há quem diga, desculpando-os, que os holandeses estão a atravessar um momento delicado da sua política interna e com pulsões nacionalistas e visões engrandecedoras do seu passado colonial. Balelas! Qual grandioso passado colonial — o da pirataria, da pilhagem do que outros descobriram, plantaram, erguerem, o do apartheid?
E, já agora, tirando o “Século de Oiro” da pintura holandesa, abrangendo o último quartel do século XVI e a primeira metade do século XVII, o que deu a Holanda à Europa? Van Gogh, na pintura, e Johan Cruyff, no futebol, são as únicas excepções. De resto, e sobretudo comparando com a Espanha e a Itália, nos últimos quase 400 anos, eles não deram à Europa um escritor, um músico, um compositor, um arquitecto, um estadista, um economista, um cientista, um automóvel, um desenho de sapatos, um filme inesquecível, uma marca de vinho, uma receita de cozinha, uma nova borboleta...
Emmanuel Macron, que viu o seu SNS, o mais caro da Europa, falhar por todos os lados, que testemunhou a indiferença inicial para com os apelos à ajuda da Itália e assiste agora ao egoísmo dos ricos europeus no combate à crise económica, parece estar a aprender a lição. “Isto passado”, disse ele, “se a Europa quiser continuar a existir, as duas palavras-chave são soberania e solidariedade. Soberania para nunca mais sermos apanhados desprevenidos nos meios essenciais para acorrermos aos nossos povos e solidariedade para enfrentarmos as crises juntos.” Mas será que alguém se lembrará disso passada a tormenta?
1 de Abril. Henrique Raposo sugeriu uma coisa com todo o sentido e justiça: que as grandes cadeias de supermercados distribuam os lucros extraordinários que agora estão a ter pelos seus trabalhadores — que lá estão, trabalhando mais e arriscando muito mais para nos servir e proporcionar esses lucros. Eu já me contentava em saber que pelo menos parte deles eram entregues aos trabalhadores, e não apenas a remuneração normal das horas extraordinárias, a acrescentar aos salários de miséria que recebem. Na Alemanha, o Governo estipulou que as empresas que beneficiem de ajudas do Estado estão proibidas de distribuir dividendos pelos accionistas enquanto durarem essas ajudas. Isso, e a proibição de pagar prémios de gestão aos administradores, é também o mínimo exigível.
2 de Abril. Rui Rio avisou também que seria inadmissível que a banca tivesse lucro este ano e no próximo, aproveitando as linhas de crédito extraordinárias para emprestar dinheiro às empresas. Sim, seria um escândalo que fosse levantar dinheiro junto do BCE à taxa negativa de 0,75% para o emprestar a 2% ou 3%. Ou que o Novo Banco se lembrasse de vir pedir mais uma fatia de dinheiro aos contribuintes. Tenham muito cuidado, o que aí vem pode ser bem perigoso! E na linha da frente para servir de alvo primordial da ira dos desesperados vai estar a banca.
Mas devemos ter fé na espécie humana, mesmo com todos os seus defeitos. Claro que haverá sempre gente como o recém-entronizado Rei da Tailândia, Rama X, que fugiu do seu país mal ouviu falar do coronavírus e se enfiou com toda a sua corte de centenas de pessoas, incluindo um harém de 20 concubinas, num hotel da Baviera, reservado para a sua quarentena. Mas há também todas as nossas empresas que não deixaram de trabalhar e que, pelo contrário, se estão a adaptar a uma economia de guerra, tentando produzir o que agora mais nos falta: máscaras, testes, ventiladores. E os camionistas que continuam a percorrer as estradas desertas para trazerem o que não pode faltar. E as Forças Armadas reconvertidas em forças amigas. E tantos outros exemplos que nos orgulham. E há, sobretudo, milhares de investigadores e cientistas que, no mundo inteiro e financiados por milionários diferentes do Rei da Tailândia, procuram sem descanso a bala de prata capaz de matar o Monstro que por aí anda espalhando o terror onde antes havia vida. Mas, ó Henrique Raposo: a natureza não nos vai dar um segundo aviso. E não se trata de um “ambientalismo esquerdista”. O planeta não é de esquerda nem de direita: é só este.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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