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segunda-feira, 18 de maio de 2020

Guião para a nova vida

Curto

Joana Pereira Bastos

Joana Pereira Bastos

Editora de Sociedade

18 MAIO 2020

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Bom dia,
Imagine que está a ver um filme na televisão e, por qualquer motivo, é obrigado a fazer pausa. Quando, passado algum tempo, volta a carregar no play, o filme já é outro. As personagens são as mesmas, mas o guião mudou. É mais ou menos o que está a acontecer às nossas vidas.
Com a reabertura das creches e das escolas secundárias, dos restaurantes, cafés e esplanadas, das lojas de maior dimensão, de museus, monumentos e galerias e até das visitas a lares, damos hoje um novo passo para retomar o filme da vida que conhecíamos. Mas, depois de dois meses de confinamento, nada é como antes foi.
O novo guião tem 35 páginas e o título não muito apelativo “Saúde e Atividades Diárias”. Foi escrito pela Direção-Geral da Saúde, o mesmo argumentista que nos últimos tempos tem definido as cenas que vivemos, e detalha ações e comportamentos “a adotar por todos”, em todos os contextos do dia a dia. Divulgado no final da semana passada, o manual ensina, por exemplo, como devemos lavar a roupa ou pôr o lixo na rua e determina que não devemos partilhar objetos pessoais, frequentar lugares movimentados ou ter “convívios dentro ou fora de casa”.
Tudo o que antes fazíamos sem pensar, todos os gestos que nos saíam naturalmente, como pôr os filhos na escola, ir jantar fora ou cumprimentar familiares e amigos, obedecem agora a instruções precisas. Não há margem para improvisos.
Nos últimos dias, proliferaram listas com normas e orientações para diferentes setores. Para os restaurantes, que hoje voltam a abrir portas com medo que o medo de todos os obrigue a encerrar depois, há um manual de dez páginas que discrimina as novas regras de funcionamento. A disposição das mesas deve permitir uma distância de pelo menos dois metros entre os clientes, que deverão ficar sentados na diagonal, embora as pessoas que vivem juntas possam ficar frente a frente a uma distância inferior. Pratos, copos e talheres só devem ser colocados na presença do cliente e todas as zonas de contacto frequente, como as mesas, maçanetas ou torneiras, têm de ser desinfetadas pelo menos seis vezes por dia. Deixa de existir a ementa tradicional para se escolher a refeição, os funcionários terão de usar máscara e o mesmo se recomenda aos clientes, exceto quando estão a comer. Qualquer semelhança com o que era antes ir a um restaurante será pura coincidência.
O mesmo acontecerá nas creches, que hoje também voltam a abrir. Os pais que levarem os filhos até aos 3 anos vão deparar-se com uma realidade inteiramente nova. O guião final da DGS, menos restritivo do que a primeira versão, impõe que as crianças sejam deixadas à porta e que troquem de sapatos para entrar. Lá dentro, terão de se habituar a ver educadores e auxiliares de máscara e mais contidos nas manifestações de afeto e não poderão partilhar brinquedos, salvo se forem "devidamente desinfetados entre utilizações". Depois de dois meses fechados em casa e afastados dos amigos, não será fácil explicar-lhes tudo isto.
Mas se a reabertura das escolas causa ansiedade, o retomar das visitas a lares, onde aconteceu o maior número de mortes e focos de contágio, é ainda mais sensível. Também aqui há um manual com normas rígidas a seguir.
Como tudo o resto, o tão esperado reencontro com os familiares será vivido com medo, o sentimento que nos vai acompanhar durante todo o resto do filme. Até ser descoberta uma vacina ou um tratamento eficaz, continuaremos em suspenso. O fim ainda não está escrito.

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