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segunda-feira, 18 de maio de 2020

Retrato de uma tragédia anunciada

por estatuadesal

(Pedro Adão e Silva, in Expresso,16/05/2020)

Pedro Adão e Silva

Há semanas, o Governo reuniu-se com economistas para discutir medidas de relançamento da economia. Infelizmente, este é um momento em que o contributo dos economistas é próximo do zero. Mesmo que se desenhassem as políticas e os estímulos mais eficazes, persistiria um problema de fundo: falta de confiança.

É este o retrato que nos deixa a sondagem do ICS/ISCTE publicada pelo Expresso. Os portugueses continuam a confiar na resposta que políticos e instituições têm dado à pandemia e acreditam maioritariamente na nossa capacidade coletiva para limitar a difusão do vírus (62%), mas todos os outros sinais são aterradores.

Com razão, estamos preocupados em relação à situação económica e financeira do país (94%) e tememos que o pior ainda esteja para vir (57%). Só que, questionados em relação aos riscos associados ao desconfinamento, uma larga maioria julga arriscado regressar às rotinas quotidianas comuns. Os portugueses consideram mesmo que não se esperou o tempo suficiente para levantar as restrições.

A decisão de colocar o país em confinamento foi rápida e eficaz, mas a reabertura será bem mais exigente e não dependerá de soluções para a economia, de dados estatísticos, nem sequer da melhor informação médica. A perceção de risco é um processo social e alterá-la depende de mecanismos difusores de confiança coletiva que não se vislumbram.

A história das nossas civilizações é, em importante medida, a história da socialização dos riscos. O que nos distingue, hoje, é não sermos individualmente responsáveis pela nossa saúde e o nosso bem-estar económico depender de mecanismos coletivos (à cabeça a segurança social pública). A resposta comunitária dada à pandemia correspondeu a mais uma etapa deste longo e atribulado processo de gestão coletiva de riscos.

Mas há também duas outras ideias relevantes sobre gestão de riscos: a primeira é que há riscos que decidimos ignorar, enquanto privilegiamos a resposta a outros; a segunda é que a resposta que lhes damos pode ir da individualização radical (cada um é responsável por lidar com os riscos que enfrenta), passando pelo fatalismo (não há nada a fazer), até aquilo que foi feito face à covid-19: uma abordagem comunitária (todos procuramos proteger todos os outros, em particular os grupos de risco) combinada com mecanismos de decisão hierárquicos (de que o Estado de emergência é o pináculo).

O que os dados da sondagem demonstram é que chegou o momento de alterar o equilíbrio entre os riscos que privilegiamos e aqueles que igno­ramos (sob pena de termos de enfrentar uma pandemia económica e social aterradora), sem com isso comprometer o equilíbrio virtuoso entre comunitarismo e respostas hierárquicas que caracterizou a resposta à pandemia em Portugal. É o único caminho para recuperarmos um pouco de confiança.

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